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Sinopse

Sailor passa um tempo na prisão depois de espancar um homem. Na saída da cadeia, ele reencontra Lula, com quem embarca numa viagem rumo à Califórnia. Mas eles serão perseguidos pelo assassino contratado pela mãe dela para acabar com ele.

Crítica

Que David Lynch não é a pessoa mais sã do mundo, isso todos sabem. É só conferir qualquer filme do cineasta para comprovar a questão. Agora, realizar um romance violento em que seus personagens exóticos de personalidade conturbada se misturam com referências a Elvis Presley e à fábula O Mágico de Oz, com certeza não é a primeira coisa que vem à cabeça quando se lê a sinopse de Coração Selvagem. O longa, vencedor da Palma de Ouro em Cannes, pode até, talvez, ser um dos mais acessíveis do diretor quanto à estrutura e narrativa lineares, mas nem por isso guarda menos e ótimas surpresas.

Até então, Lynch nunca havia usado o amor como tema central de sua obra. Pode ter pincelado algo em seus filmes anteriores, mas um casal protagonista e que buscava, justamente, viver seu romance em paz, era algo inédito na carreira do diretor. E que maneira mais interessante de fazer isso senão desvirtuar a paixão clássica para algo quase doentio? Afinal, como explicar melhor a atração que se desenvolve de forma tão rápida entre Sailor (Nicolas Cage) e Lula (Laura Dern)? Ele, um assassino injustamente acusado de homicídio, resolve fugir com sua garota logo após sair da prisão. O problema é a mãe dela, Marietta (Diane Ladd, que também é mãe de Dern na vida real) tão apaixonada por Sailor quanto que contrata um matador de aluguel para ir à caça dos dois. No trajeto para o Texas, os personagens típicos de Lynch começam a pipocar pela tela, como o assaltante de dentes podres Bobby Peru (Willem Dafoe, ótimo) e a horripilante Juana Durango (Grace Zabriskie), além de uma Isabella Rossellini totalmente sem glamour e Sherylin Fenn como a garota que, após um acidente de carro, quer arrumar o cabelo mesmo com o cérebro à mostra. Todos tem um aspecto estranho que se relaciona diretamente à galeria de personas criadas pelo cineasta, com marcas físicas e psicológicas de fácil identificação e absorção dentro do imaginário coletivo.

Nesta estrada dos tijolos amarelos fora do comum, Sheryl Lee (a Laura Palmer de Twin Peaks), surge como a Fada Boa que incentiva o protagonista a continuar sua jornada para viver a  felicidade com Lula. Por sinal, a personagem mais parece uma versão adulta de Dorothy que ainda tem a mesma ingenuidade da dona do Totó quando criança, algo totalmente apropriado pela persona de Laura Dern, seja pela sua inocência quase ignorante ou pelo incessante mascar de chicletes. Já Nicolas Cage constrói seu Sailor como um anti-herói ridiculamente trajado de Elvis Presley com seu topete e a jaqueta de cobra, começando a formar aquele protagonista de filmes de ação que tanto veríamos e hoje em dia até cansamos de tão ruins que estão. Mas é claro que a Bruxa Má do Oeste, ou seja, Marietta, é a que rouba toda a atenção do filme. Quando Diane Ladd entra em cena, o mínimo que se pode esperar é um surto psicótico da sua personagem completamente maluca e maléfica que tem como fetiche se vestir, ou melhor, ficar igual a estrelas de Hollywood, como Marilyn Monroe. A atriz encarna sua personagem com tanta maestria que, mesmo no auge da loucura, é impossível não crer que aquela criatura doida pode (e deve) existir na vida fora das telas. Não à toa recebeu justas indicações como Melhor Atriz Coadjuvante no Oscar e no Globo de Ouro da época.

 

A fotografia calorosa do filme, que parece estourar em diversos momentos pelo vermelho e o amarelo em abundância, remete totalmente ao amor desenfreado de seus protagonistas, que de um simples beijo já partem para um sexo forte. O cenário árido do sul norte-americano evidencia ainda mais este aspecto. A violência do filme se torna absurdamente chocante por conta destes tons quentes que emanam na tela. Nunca um road movie foi retratado de forma tão atípica até então, o que abriria portas para longas como Assassinos por Natureza (1994), de Oliver Stone. Mais uma vez, Lynch prova que, mesmo dentro de uma estrutura convencional aos olhos mais desatentos, sua marca registrada está impressa em cada quadro, em cada fiapo, em cada buraco da dentadura de um personagem banguela. Em Coração Selvagem, o cineasta nos convida a conhecer os lados mais excitantes e obscuros do amor, seja ele da forma que for. Afinal, cada relação é única, assim como cada longa do diretor.

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é crítico de cinema, apresentador do Espaço Público Cinema exibido nas TVAL-RS e TVE e membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Jornalista e especialista em Cinema Expandido pela PUCRS.
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