Crítica


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Sinopse

Uma equipe de investigadores do jornal romeno Gazeta Sporturilor tenta descobrir uma vasta fraude na área da saúde que enriqueceu magnatas e políticos e levou à morte cidadãos inocentes.

Crítica

Os letreiros iniciais informam os espectadores que, em 2015, a boate Colectiv, em Bucareste, sofreu um incêndio de grandes proporções, levando à morte de dezenas de jovens. Para a surpresa geral, mesmo as vítimas com ferimentos leves faleceram no hospital durante as semanas seguintes. O que teria ocasionado a morte de pessoas que não corriam riscos aparentes? Uma revista de esportes decide investigar o caso, descobrindo uma verdadeira epidemia de infecções hospitalares acontecendo por toda a Romênia, devido a desinfetantes diluídos pelas empresas na intenção de otimizar os lucros. O escândalo sobre um incêndio se transforma no escândalo da saúde pública, e por sua vez, no escândalo de corrupção do governo quando se descobre o lobby de políticos para que todos os grandes hospitais adquirissem os produtos adulterados. A partir de um caso pontual, o diretor Alexander Nanau traça um panorama amplo sobre a rede de corrupção que assola o país.

Durante a primeira metade do filme, Collective (2019) se constrói como uma obra-denúncia e um filme de oposição ao governo. O diretor elege como herói Catalin Tolontan, jornalista da Gazeta Sporturilor, que conduz as investigações por conta própria, efetuando testes clínicos, coletando testemunhos sigilosos entre os funcionários dos hospitais e confrontando Ministros durante conferências de imprensa. Com uma câmera na mão, sem qualquer forma de iluminação artificial nem explicações suplementares, o filme aposta no cinema de urgência próximo da reportagem como forma de homenagear o jornalismo investigativo, que não se contenta com as informações oficiais oferecidas pelo governo. O jornal em questão aparenta adotar uma abordagem um tanto sensacionalista, o que talvez diminua a sua credibilidade (“Seus segredos são as nossas feridas!”, diz a matéria de capa da Gazeta esportiva), mas para Nanau, importa sobretudo o fato de um veículo minúsculo demonstrar a coragem de enfrentar os poderosos. A narrativa de Davi contra Golias, ou ainda o espetáculo inerente ao desnível hierárquico entre os envolvidos, interessa ao cineasta tanto quanto o caso em si.

Na segunda metade, no entanto, o documentário se transforma num filme pró-governo, quando o arrogante Ministro da Saúde é substituído pelo jovem e bem-intencionado Vlad Voiculescu. O filme, que antes observava as declarações do governo de fora, como um espião, passa a se sentar à mesa do Ministro em cada reunião, acompanhando-o durante deslocamentos dentro do carro e em conferências de imprensa. Embora se trate de homens totalmente diferentes, eles servem ao mesmo partido, ao mesmo presidente até então acusado de conivência com os escândalos. Que tipo de relacionamento Voiculescu mantém com os poderes mais altos, e de que maneira dois ministros da saúde de posicionamentos radicalmente opostos se sucedem dentro do mesmo governo? Nanau jamais efetua esses questionamentos essenciais, preferindo se posicionar ao lado de seu novo herói e seguindo cada tentativa do político em desvincular o sistema de saúde da mão de empresários mafiosos. Durante o terço central da narrativa, o antigo protagonista, Catalin Tolontan, é esquecido.

Esta mudança de olhares fornece o principal problema de um filme repleto de coragem, e fruto de profundo trabalho investigativo. O ponto de vista indefinido entre a mídia oficial e a mídia alternativa, entre criticar o governo ou juntar-se a ele, coloca Collective num posicionamento frágil politicamente. Ainda que sirva a revelar uma série de escândalos, demonstrando de modo pertinente o vínculo entre eles, o diretor não toma a precaução de questionar seu próprio posicionamento diante do caso. A busca pela verdade a qualquer preço justifica a estética ágil, de imagens tremidas e luzes heterogêneas, mas não necessariamente legitima a alternância de posicionamento. É louvável poder mudar de ideia caso haja novas descobertas que apontem para tal, porém nem a montagem, nem o filme articulam qualquer forma de reflexão sobre esta mudança súbita de protagonismo. Na primeira metade, tudo o que vem do governo parece suspeito e explorador. Na segunda metade, o mesmo governo torna-se fonte primária e credível de informações. Seria a boa vontade de um homem realmente capaz de transformar o sistema? Como ele foi escolhido para o cargo, e como se situava politicamente antes disso?

Outro fator digno de questionamento se encontra na posição do filme diante das vítimas do caso. Ainda que não constituam o foco da direção, elas são resumidas à figura de uma única mulher, fortemente queimada, tendo perdido parte das mãos. Ela se torna modelo, posando nua para fotógrafos em nome da necessidade de denunciar a tragédia. Escolhe-se uma porta-voz que transforma o horror da deformidade numa beleza e numa força, ressaltando uma trajetória de aceitação que a narrativa jamais expande a outros sobreviventes. Talvez fosse possível, e mesmo necessário, atacar o corrupto ao mesmo tempo em que se abraça as vítimas desses. Pode-se argumentar que a compreensão dos atos dos responsáveis completa-se nas consequências sofridas pelas vítimas. Ora, Collective contenta-se com a cota mínima de representatividade: uma única mulher, fortemente midiatizada, e de posição excepcional entre as vítimas. Enquanto alterna seus focos – do jornalismo ao governo, da corrupção às vítimas -, o projeto lança um olhar extremamente amplo e ambicioso ao sistema sociopolítico romeno, sem dar conta da complexidade de todos os seus laços. Resta um projeto mais interessante enquanto cinema investigativo do que discurso político ou humanitário.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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