Crítica

Em 2006, a documentarista norte-americana Laura Poitras foi indicada ao Oscar pela realização de My Country, My Country (2006), sobre a vida de iraquianos durante a ocupação estadunidense com a Guerra do Iraque. Por conta de sua pesquisa para o filme, a cineasta foi inclusa em uma lista secreta de vigilância do governo dos Estados Unidos, por quem foi detida e interrogada uma série de vezes. Seu filme seguinte, The Oath (2010), também com enfoque nas vidas afetadas pela Guerra ao Terror, foi a segunda parte de uma trilogia sobre a América pós-ataques terroristas de 11 de setembro, completa com o assustador e obrigatório Cidadãoquatro (2014).

Já radicada em Berlim, com a intenção de evitar censuras e novas afrontas do governo de seu país de origem, Poitras reunia argumentos e imagens para um documentário sobre as agências e sistemas de vigilância do governo norte-americano quando passou a receber e-mails criptografados de alguém identificado apenas como “cidadão quatro”. O conteúdo das mensagens era direto: ele estava disposto a revelar segredos sobre a vigilância massiva gerida por sistemas de inteligência como a Agência Nacional de Segurança (NSA) dos Estados Unidos. Ao lado do advogado e premiado jornalista Glenn Greenwald, ela viajou até Hong Kong para encontrar e entrevistar sua fonte, que descobriu ser o hoje internacionalmente notório Edward Snowden.

Com a estética direta e pouco invasiva dos melhores filmes no estilo cinema vérité, Cidadãoquatro é o registro definitivo sobre um dos maiores e mais recentes escândalos governamentais de proporções ainda imensuráveis. História sendo feita aos olhos de cada espectador, o documentário de Poitras parte de uma perspectiva íntima para registrar oito dias de conversas com Snowden em um pequeno quarto de hotel. Uma câmera quase estática apresenta o ex-funcionário da CIA e NSA entre declarações surpreendentes e ultrajantes sobre os sistemas de vigilância e controle dos EUA que extrapolam da dicotomia entre segurança nacional e invasão de privacidade.

Enquanto captura as revelações de seu informante e suas repercussões ao redor da mídia e política mundial, Poitras dedica momentos para acompanhar as consequências dos atos de Snowden, imediatamente afrontado tanto como um herói quanto como um dissidente; um patriota e também um pária traidor. A proximidade da cineasta com o objeto de seu documentário e entrevistado é impressionante. Momentos como quando Snowden se dá conta de que nunca mais poderá voltar para sua casa e para sua namorada nos Estados Unidos ou quando seu futuro é decidido na frente de seus olhos – e das câmeras de Poitras – são de um impacto inimaginável na vida de alguém que decidiu tomar uma atitude para servir a um bem maior.

Cidadãoquatro é uma obra feita por e repleta de pessoas inteligentes e corajosas, um documentário realista que em sua maestria sobrepuja tantos thrillers investigativos e de espionagem – e aqui incluem-se também os ficcionais. Munida da astúcia de Alex Gibney com o material que resultou em Roubamos Segredos: A História do Wikileaks (2013), Laura Poitras se posiciona no rol de documentaristas contemporâneos influentes e engajados, dedicados a utilizar o cinema em sua melhor forma como uma arma poderosa de informação e denúncia.

Urgente, pontual e brilhante, Cidadãoquatro captura um momento particular na história mundial que deve reverberar ao longo das próximas décadas e talvez séculos, resultando no encontro do jornalismo e cinema investigativos em seus níveis máximos. Um momento singular que jamais ocorreria caso uma única conexão não fosse feita, e Greenwald, Snowden e Poitras são responsáveis e honrosos por tornar tal magnífico feito possível.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Graduado em Publicidade e Propaganda, coordena a Unidade de Cinema e Vídeo de Caxias do Sul, programa a Sala de Cinema Ulysses Geremia e integra a Comissão de Cinema e Vídeo do Financiarte.
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