Crítica

O Anjo Ferido é o título de uma pintura do simbolista Hugo Simberg que representa dois jovens carregando uma figura angelical machucada. A obra opressiva do artista finlandês pontua todo o drama The Wounded Angel, novo filme de Emir Baigazin que demonstra com crueza as agruras e impossibilidades de adolescentes no Cazaquistão destruído econômica e culturalmente durante parte dos anos 1990, na sequência de um duro regime soviético. Dividido em quatro segmentos, pecado e punição são representados duramente na produção, consagrada com o prêmio especial do júri no Festival de Berlim.

Cada um dos meninos guarda histórias trágicas em um lugar onde a felicidade é utopia. Zahra tem um pai criminoso e precisa ocupar este posto para cuidar de sua família; Aslan sugere um aborto para a namorada de modo a não precisar interromper seus estudos; Zhaba busca por um tesouro em meio a sucatas; Balapan sofre constantes e violentos ataques e não sabe o que fazer para se proteger. Suas dores são compartilhadas em meio aos pobres casebres de uma vila cercada por industrias abandonadas, numa cidade sem recursos e ainda mais limitada pela imposição de um governo errante.

Já premiado no mesmo festival por Harmony Lessons (2013), Baigazin reitera seu retrato melancólico de uma juventude corrompida pelas circunstâncias do ambiente ao qual está inserida. As quatro tramas paralelas não garantem a coesão de uma única história plenamente desenvolvida, porém superam dilemas comuns a narrativas multifacetadas com uma abordagem tão corajosa quanto lindamente registrada. As atuações do jovem elenco são outros trunfos; os intérpretes inexperientes demonstram performances repletas de nuances e intensidades marcantes, num notável exemplo da capacidade e possibilidades do trabalho de não-atores.

Assinada pelo belga Yves Cape, que deixou suas cores e enquadramentos impressos no excelente Holy Motors (2010), a fotografia do longa exibe um arrojo visual impressionante, desenhado em uma composição de planos estáticos e repletos de detalhes em cada frame. Portas, janelas, espelhos, corredores e outras aberturas figuram repetidamente entre os personagens e a objetiva, mesmo quando em closes, tornando a relação entre estes dois elementos e o espectador próxima, ainda que interrompida, fragmentada.

A cada nova história, as figuras paternas aparecem incapazes de oferecer qualquer perspectiva ou conselho para seus filhos, amplificando suas posturas pessimistas dentro de uma juventude perdida. As tramas até se aproximam vez ou outra, mas nunca se encontram completamente, com exceção de uma poderosa cena final protagonizada pelos quatro garotos. Sem qualquer trilha incidental e ritmado por uma edição vagarosa, The Wounded Angel não oferece uma sessão fácil, mas seu rigor estético e narrativo faz valer a atenção que ele exige de seu público. A sequência em que Baigazin recria a pintura de Simberg que lhe serve como título, com dois garotos drogados carregando um órfão que é deficiente físico e intelectual, é inesquecível e de uma beleza singular. Ainda assim, infelizmente, nunca vemos o paraíso do qual o anjo caiu.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Graduado em Publicidade e Propaganda, coordena a Unidade de Cinema e Vídeo de Caxias do Sul, programa a Sala de Cinema Ulysses Geremia e integra a Comissão de Cinema e Vídeo do Financiarte.
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