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Sinopse

No recôncavo da Bahia, Margarida vive em São Félix, isolada pela dor da perda do filho. Violeta segue a vida em Cachoeira, entre adversidades do dia a dia e traumas do passado. Quando Violeta reencontra Margarida inicia-se um processo de transformação, marcado por visitas, faxinas e cafés com canela, capazes de despertar novos amigos e antigos amores.

Crítica

O clima de descontração de uma das sequências iniciais de Café com Canela, com diálogos espirituosos que fazem graça, inclusive, das desgraças do cotidiano singular da Bahia retratada, é uma isca falsa, já que o tom subjacente predominante, dali para adiante, é o da dor. Aliás, antes mesmo dessa passagem repleta de carisma, há um preâmbulo curioso, com imagens emulando vídeos caseiros de uma festa infantil. Não é de se estranhar essa alternância de registros, de aspectos visuais, mas sim a maneira completamente desajeitada como a montagem busca organizá-la. Sobressai uma aleatoriedade que depõe contra a nossa identificação, por instaurar uma confusão sem indícios de contornos densos ou ideias de expressividade. Esse desarranjo se avoluma com a troca de ambientes, algo que percebemos mais adiante como um retrocesso cronológico para remontar a instantes anteriores àquela atmosfera de celebração que marca os primeiros momentos, de superação e festividade.

Margarida (Valdinéia Soriano) vive solitária, abandonada por si própria à melancolia após a perda do filho pequeno, de quem vemos a comemoração do aniversário nos vídeos familiares. Ao largo de sua ausência, surgem outros personagens extrovertidos, que, supõe-se, representam o comportamento dos moradores da região do Recôncavo baiano, onde transcorre o longa-metragem da dupla Ary Rosa e Glenda Nicácio. Babu Santana interpreta um médico casado com um homem mais velho, por quem é absolutamente apaixonado. Arlete Dias vive uma mulher que ilumina o filme com sua presença e sacadas inspiradas, sobretudo, acerca de namoros, amizades e demais interações humanas. Há qualidades em Café com Canela, mas elas são aproveitadas apenas ocasionalmente, como respiros ao desordenamento predominante. O esqueleto do roteiro é quase caótico, do que decorre a sensação crescente de desorientação, isso até que entendamos perfeitamente a dinâmica que passa a ser central.

Os realizadores lançam mão de recursos frágeis para denotar o calvário de Margarida. As paredes de sua casa começam a ser tomadas por vegetação, sangue escorre pelas paredes do quarto, entre outras coisas. Seu contraponto é Violeta (Alinne Brune), ex-aluna, moça jovem, casada com um sujeito apaixonado, que vende coxinhas de galinha de porta em porta para colocar um pouco de dinheiro em casa. Mas até chegar aí, nessa troca mútua, muita coisa sem importância acaba acontecendo. Com o pretexto do desenvolvimento dos personagens embaixo do braço, Ary Rosa e Glenda Nicácio constroem um percurso cheio de gratuidades, como a brevíssima cena da mulher enlutada molhando os pés num rio com cachoeira ao longe. Do ponto de vista puramente técnico, salta aos olhos a utilização de várias perspectivas, chegando ao cúmulo de nos oferecer o olhar do cachorro, permitido através da grande angular. Esse excesso incomoda, bem como a precariedade da cenografia.

Outra fragilidade patente de Café com Canela é o âmbito emocional. O ótimo trabalho do elenco bem que ensaia mitigar a debilidade da encenação, do ritmo e do tom prejudicados, inclusive, pela montagem. Contudo, são tantos os problemas que nem isso dá conta de salvar o todo. A figura do ex-marido de Margarida é meramente ilustrativa, pois não possui qualquer importância dentro desse itinerário combalido. As rosas trocadas como forma de denotar afeto – e, notem, as protagonistas igualmente têm nomes de flores – configura um recurso destituído de poesia e beleza pela maneira ordinária como é conduzido na tela. Mas, talvez, nenhuma outra passagem do filme expresse tanto a sua inconsistência, em diversos níveis, como a conversa no qual é celebrada a magia do cinema. É como se os realizadores nos pedissem licença para expor (artificialmente) sua concepção pela boca de uma personagem prestes a desabrochar novamente. Ocasião deslocada, ela acaba refletindo as falhas estruturais do filme.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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