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Sinopse

Zain é um menino de 12 anos que se comporta como adulto devido ao sofrimento que passou: fugiu dos pais abusivos, foi morar nas ruas, cuidou da refugiada Rahil e de seu bebê e foi preso por um crime violento. O garoto, então, decide entrar nos tribunais com um processo contra seus pais, acusando-os do “crime” de lhe dar a vida.

Crítica

Cafarnaum, segundo a Bíblia, foi uma cidade que se tornou conhecida por ter sido cenário de diversos milagres cometidos por Jesus Cristo, como o exorcismo ao pôr-do-sol, outro na sinagoga, a cura de um paralítico, etc. Era lugar de intenso tráfego e comércio, a ponto de possuir uma alfândega, um quartel-general e estar localizada na fronteira entre os estados de Filipe e Herodes Antipas. No entanto, apesar de lá o filho de Deus ter morado e exercido o seu ministério, acabou que o povo terminou por lhe virar as costas, afastando-se dos seus ensinamentos e pregações. Como resultado, o lugar foi amaldiçoado, destinado a uma completa destruição. E se desse feito nada sabemos, hoje é possível dizer que está mais próxima do que nunca. Afinal, é isso que Cafarnaum mostra: este ambiente está por todos os lados, ao redor de todos, e sua danação parece ser inevitável.

O protagonista de Cafarnaum é Zain (Zain al Rafeea), um menino de doze anos que comete um ato bastante insólito: decide entrar na Justiça contra os próprios pais. Ao ser questionado sobre os motivos do processo, ele responde, sem hesitar, que a culpa deles é a de o terem colocado no mundo. Nesse momento, a trama do filme da diretora e roteirista Nadine Labaki – que também aparece como atriz, no papel da advogada do garoto – dá um passo atrás para voltar no tempo cerca de um ano e mostrar como é o cotidiano da criança e de seus irmãos, cerca de uma dezena de pequenos literalmente abandonados por uma mãe grosseira e estressada e um pai beberrão e desinteressado. Todos vivem amontoados, uns por cima dos outros, em um cubículo de dois ou três cômodos em uma grande cidade no Líbano. Entre idas eventuais à escola – afinal, a matrícula lhes garante bolsas do governo – e o trabalho durante todos os seus horários livres em mercados das redondezas, eles vão dando um jeito de sobreviver.

A situação começa a mudar quando uma das irmãs, aquela que lhe é mais próxima, tem a primeira menstruação. O que seria sinal de alegria e comemoração em muitas famílias, para ele é um aviso de alerta. Afinal, isso significa, na prática, que ela não mais é uma menina: é uma mulher, e, como tal, já pode seguir seu rumo. E no caso deles, isso é igual a ser negociada pelos pais com aquele que fizer a melhor oferta para tê-la como esposa – ou escrava sexual, dependendo do ponto de vista – algo que é bastante comum naquela sociedade, principalmente entre as camadas mais pobres e humildes da população. Zain pensa rápido, e até tenta elaborar um plano para livrá-la desta sina, mas não com a destreza suficiente. E quando percebe que não há mais nada a fazer pela irmã – que é dada ao dono do armazém, um homem feito e maduro, em troca de melhores condições de aluguel – a ele cabe apenas ir embora em busca de uma vida que lhe permita respirar longe de tudo aquilo.

É quando o caminho dele acaba cruzando com o de Rahil (Yordanos Shiferaw), uma refugiada etíope que vive de forma clandestina de bicos como cozinheira e servente, ao mesmo tempo em que tenta criar seu filho, ainda bebê. Mesmo com tão pouco, ela aceita levar Zain para o casebre onde mora, e da mesma forma que lhe oferece um teto e com ele dividir a pouca comida que possui, dele exige em troca uma importante ajuda: é o garoto que passa a servir de babá do recém-nascido durante as horas em que ela se ausenta atrás de serviços que possam lhe garantir dinheiro suficiente para comprar um passaporte e partir para a Europa, onde espera ter uma vida melhor. Quando, no entanto, é presa em uma batida policial, fica sem mais poder voltar à casa. O que será das duas crianças, uma obrigada a se sentir responsável pela outra, ainda que nenhuma tenha condições para tanto?

São muitos meandros no roteiro tortuoso que é perseguido por Labaki, o que deixa evidente uma vontade de discutir assuntos demais em pouco tempo. Ela fala de abandono familiar, crise dos imigrantes, violência caseira, despreparo paterno, abuso sexual, preconceito étnico e outras tantas questões que chocam e provocam, mas que ao surgirem em excesso, adquirem um toque anestesiante. Somente a história do menino seria grave o suficiente, assim como a trajetória da mãe solteira que faz de tudo a seu alcance pelo bem-estar do filho em um país que lhe rejeita. Há ainda o episódio da Justiça – um tanto mal explicado, como se uma reportagem na televisão fosse capaz de inspirar decisões tão drásticas – e o casamento arranjado, entre outros incidentes não menos trágicos. Cafarnaum – a expressão pode ser traduzida, literalmente, como ‘caos’ – é tal qual o seu título anuncia: caótico. Há muito no que se prestar atenção, mas pouco é dedicado a uma necessária reflexão. A cineasta aponta vários lados, e não contente, ainda direciona as respostas que procura. Não há dúvida quanto ao valor do cinema-denúncia que propõe. Porém, se demonstrasse menos aflição e maior distanciamento, é provável que o resultado fosse mais efetivo. Funciona, é inegável, mas a partir de certo ponto se aproxima perigosamente de um melodrama novelesco. E isso é tudo que deveria ser evitado, ainda mais se tratando de temas tão urgentes como os que aqui são abordados.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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