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Sinopse

Edson Francisco da Silva era um homem analfabeto, que conheceu os movimentos de luta por moradia e começou a participar cada vez mais ativamente das ocupações. Aos poucos se instruiu, coordenou gestos de resistência e se tornou um dos líderes do MTST. No entanto, devido a divergências políticas com o grupo, se separou e fundou o MRP. Após sobreviver a inúmeras prisões e tentativas de assassinato, ele narra sua trajetória.

Crítica

Na cena inicial deste documentário, o então líder do MTST, Edson Francisco da Silva, está sendo retirado a força pelos policiais de um prédio ocupado por ele e dezenas de famílias. A câmera na mão imprime urgência, as imagens de arquivo sugerem um tom de reportagem. A diretora Dácia Ibiapina poderia se ater a este registro, dotado por si próprio de uma força significativa. Ora, ela faz questão de revelar, ao mesmo tempo, um grupo considerável de eleitores de Bolsonaro, vestidos em camisetas da seleção de futebol, aplaudindo a retirada dos habitantes. A câmera se foca no rosto de mulheres visivelmente ricas e maquiadas sorrindo, erguendo faixas contra os moradores. A multidão verde e amarela comemora o espetáculo como as sociedades medievais aplaudiam as execuções e linchamentos em praça pública. Existe prazer no ódio das elites.

O filme nunca se contenta em ser apenas um painel da luta por moradia no Distrito Federal: ele o faz dentro de um contexto sociopolítico muito atual e específico. As reivindicações não possuem o mesmo valor dentro de um governo de centro-esquerda, como houve até o término do governo Dilma Rousseff, ou num regime de extrema-direita, de 2019 em diante. A cada nova ocupação, ou nova resistência diante de policiais e juízes, a montagem nos relembra as obras das Olimpíadas, as remoções forçadas devido às obras de construção, o golpe de 2016. Ibiapina não parte do exemplo de Edson para compreender o cenário geral (fazendo dele um exemplo), nem apresenta o contexto amplo para em seguida justificar as ações de Edson (fazendo dele um sintoma). O discurso prefere apresentar ambos em paralelo, se retroalimentando: uma série de injustiças sociais leva à movimentação das minorias, que são então perseguidas, criminalizadas, o que desperta nova revolta e novas movimentações. O mecanismo é cíclico.

Ao mesmo tempo, o documentário adota um roteiro curioso. Na primeira metade, Edson constitui o único protagonista, sendo retratado por seu passado, suas experiências familiares e amorosas, sua transição entre o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra) e o MRP (Movimento de Resistência Popular). Como ele controla o ponto de vista, a diretora não questiona outros membros do MTST sobre os motivos da briga que levara ao desligamento de Edson. Quando ele se declara contrário ao governo PT e afirma que “a política não vai resolver as coisas”, a diretora não busca desenvolver a complexa ideia. Qual seria a alternativa, então, à política partidária? Ele percebe que o fato de negar a política constitui, em si, um ato político? O que exatamente Edson repudia tanto no governo Dilma Rousseff? A opinião era a mesma em relação aos anos Lula? Neste momento, o documentário que tanto articulava o individual e o coletivo se cala. Nem mesmo as prisões do protagonista, acusado de extorsão dos moradores, são expostas ao longo da trama. Ibiapina foge das polêmicas para construir um retrato tão empático quanto unilateral.

Ora, na segunda metade, Cadê Edson? se abre enfim a outras lideranças, concentrando-se em pelo menos dois outros homens que ajudaram a coordenar movimentos de resistência. De repente, o interesse do filme é múltiplo: a diretora passa a se colocar em cena, entrevistando os personagens; ela introduz uma longa cena com drones durante a chegada da polícia de helicóptero sobre o terraço de um arranha-céu; começa a explorar o conveniente rótulo de “comunista” aplicado a qualquer inimigo do empresariado, inclusive militantes iletrados que jamais leram Marx. Edson chega a desaparecer durante várias cenas, ao passo que sua vida amorosa não interessa mais. Ao longo de curtos 72 minutos, existe uma ruptura nos pontos de vista que divide o projeto em dois: primeiro, aborda-se Edson reagindo à política nacional, e segundo, privilegia-se lideranças populares das quais Edson constitui apenas um exemplo marcante entre tantos.

No que diz respeito à condução das imagens e entrevistas, o resultado se revela bastante simples: uma câmera na mão valoriza momentos em conjunto, a exemplo da roda de canções religiosas ou as discussões políticas. Ao entrevistar seus personagens, a diretora efetua questionamentos retóricos: “Qual é a sua expectativa para a ocupação?”. À mulher grávida de uma menina que se chamará Vitória, pergunta: “O que você deseja para a Vitória?”. Ocasionalmente, alguma bela poesia toma a cena, a exemplo do garotinho andando de bicicleta pelo esqueleto abandonado de um prédio vazio. No entanto, estes momentos são raros: Cadê Edson? propõe um olhar frontal ao tema, dotado de urgência e fervor político, menos interessado em suscitar debates entre correntes opostas do que reivindicar atenção a uma versão dos fatos que se considera correta, e subrepresentada pela mídia. Este é um filme de disputa de narrativas, uma tentativa de correção história quanto à imagem de Edson e seus colegas de luta.

Filme visto na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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