Crítica


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Sinopse

Ano de 1983. Em La Victoria, mora Gladys, uma jovem chilena de 32 anos. Conhecida como "La Francesita", forte, atraente e corajosa, ela vive o dia a dia em um bairro marginal de Santiago durante a ditadura de Pinochet.

Crítica

Gonzalo Justiniano é um dos grandes realizadores do cinema chileno. Ainda que não seja tão conhecido internacionalmente quanto Pablo Larraín ou Sebastian Lelio, Justiniano conta em sua filmografia com títulos premiados nos festivais de Berlim, Buenos Aires, Cartagena, Havana, Montreal e até Gramado, no Brasil. E é dele o drama Cabros de Mierda, que estreou em Santiago em agosto de 2017 e desde então tem sido exibido em eventos pela América Latina, como o Festival Internacional de Cine de Punta Del Este, em fevereiro de 2018, e o 28º Cine Ceará, em agosto do mesmo ano. E o longa, que poderia ser traduzido para o português como “Crianças de Merda” (algo como ‘pestinhas’, ou ‘pequenos malditos’, todas opções melhores do que Cabras de Merda), tem em sua narrativa uma possibilidade de diálogo que deve encontrar uma forte ressonância nos seus países vizinhos.

Samuel Thompson (o estreante Daniel Contesse) é um missionário norte-americano, enviado por sua congregação religiosa até o Chile para disseminar a palavra do senhor. Estamos no início da década de 1980, no auge da ditadura de Pinochet, quando toda e qualquer pessoa suspeita de atividades supostamente terroristas era perseguida, interrogada e, muitas vezes, morta pelo próprio estado. O garoto de pouco mais de vinte anos acaba indo morar nos subúrbios, na casa de Gladys (Nathalia Aragonese), filha da velha Gladys e mãe da pequena Gladys. Junto com elas, moram em uma espécie de cortiço outros parentes, muitos deles ou velhos, ou crianças. Onde estão seus pais, seus filhos? A conjunção política explica: fugiram, justamente pelo envolvimento dito terrorista, em atos de contravenção, contrários às forças oficiais e às autoridades que cerceavam a liberdade e a democracia da população.

Tio Sam, como fica conhecido, aos poucos vai se envolvendo com essa realidade. Seu interesse é em levar os ensinamentos da Igreja ao maior número de pessoas, mas os problemas que aquela comunidade enfrenta são mais urgentes – e vitais. Entre uma mãe que precisa abandonar a filha pequena para se proteger, a um pai que aceita mudar de nome e profissão para não desistir de lutar, estes são os que pretendem resistir de uma outra forma, oferecendo o apoio e o suporte necessário para que, quando tudo enfim se acalmar – e a mudança há de acontecer – os que partiram possam retornar aos seus lares e às suas famílias com um mínimo de segurança. Gladys, a protagonista, é uma dessas mulheres. Ela até pode parecer ingênua – mas está longe disso. E se na calada de noite se encontra com outros dispostos a desafiar a polícia para pintar palavras de ordem em muros descobertos, também fará o mesmo com a cabeça daquele jovem que se encontra sob o seu teto.

Se a relação que começa a se desenvolver entre Gladys e Sam é uma das principais forças de Cabros de Mierda, muito do carisma que o filme estabelece com o seu espectador estará na ligação dos dois com uma destas crianças deixadas para trás, sob os seus cuidados: o pequeno Vladi (Elías Collado), um menino de óculos maiores que o próprio rosto que tem pesadelos à noite, que não se cansa de fazer perguntas e retirar suas próprias conclusões sobre o que vive e observa. Estará, portanto, nos olhos desse garoto também o sofrimento enfrentado no lado de cá da tela, que se debate contra a injustiças expostas de um tempo de intolerância, abusos e descontroles. Uma realidade que parece ter ficado perdida em um outro tempo e espaço, mas que, no menor descuido, poderá se mostrar mais próxima do que qualquer um gostaria de acreditar.

Cabros de Mierda, portanto, mais do que um filme forte em suas ações e potente no discurso, é também necessário pela urgência dos eventos explorados e pela necessidade de evitar que mais esse círculo da história se repita. Justiniano sabe bem disso, e, portanto, reconhece o quão apropriado é este momento para não apenas levantar bandeiras, mas também defender debates que possibilitem tanto a troca quanto o refletir, o não aceitar de forma amortecida aquilo que é imposto como absoluto, ainda que não haja certificação da sua veracidade. Tempos perigosos são os que vivemos, ontem e hoje, e assim poderão ser os de amanhã, se não formos agora atentos o suficiente. E mesmo que o filme proporcione essa visão apenas pelo confronto com o personagem estrangeiro, e que seu final resvale em alguns exageros que, por mais factuais que sejam, gerem um desconforto que pouco contribui com o avanço da sua dramaturgia, é o conjunto que revela seu valor. Um todo mais forte e contundente do que qualquer uma das suas partes em separado.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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