Crítica


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Sinopse

Vivendo numa coletividade norteada pela burocracia, um homem de meia idade encontra na realidade a mulher que frequentemente habita seus sonhos. Obcecado por reencontra-la, passa a trabalhar para o Ministério da Informação. Em meio a essa investigação pessoal, descortina os vícios e os procedimentos nefastos de sua sociedade.

Crítica

Merda!”, profere o personagem de Jonathan Pryce em dado momento de Brazil: O Filme, só para ser respondido pelo de Robert De Niro com um “estamos nela todos juntos”. Mais tarde, descobrimos que a fala se tratava de um escárnio feito sobre um dos muitos slogans expostos em outdoors na cidade distópica em que vivem os dois, e que diz: “Felicidade! Estamos nela todos juntos”. É uma piada que surge no fundo do quadro e de forma sutil em um longa que não se poupa de empregar o caricato para expressar o quão distorcida é a noção de felicidade nesse lugar. Uma versão exagerada, mas não menos apurada, do nosso próprio sistema consumista e burocrático, que muitas vezes engole os indivíduos ao ponto em que objetos e pessoas se confundem, como acontece de forma literal em outra cena dessa pequena obra-prima dirigida por Terry Gilliam.

Membro do grupo humorístico Monty Python, Gilliam traz claramente consigo não só a estética, como também a carga crítica que a trupe entregava em cada esquete ou longa-metragem. Assim, nos apresenta à rotina da metrópole que serve de palco para sua história (jamais nomeada, mas que implicitamente entendemos ser o Brazil do título) através de lentes grande-angulares, que distorcem as formas e os cenários causando imediata estranheza. Contribuem para essa impressão os formatos longos, amplos e angulosos das construções, que buscam mais comentar a imponência dos prédios e das estruturas sobre os indivíduos, do que estabelecer um tom de pesadelo, como faziam os adeptos ao Expressionismo Alemão – ainda que, consequentemente, também alcancem esse efeito.

Aliás, o design de produção é um personagem à parte e essencial ao roteiro. Da rodovia cercada por outdoors que não permite que os viajantes vejam os cinzentos campos de mineração escondidos atrás das alegres propagandas, até os dutos de metal que parecem inevitavelmente atravessar qualquer cômodo de qualquer lugar (com a televisão tentando vendê-los como uma nova tendência em decoração), a cenografia, por si só, já exigiria que Brazil: O Filme fosse revisto, para que cada detalhe conseguisse ser observado. Porém, mesmo que alguns passem batidos, é impossível imaginar a busca de Sam Lowry (Pryce) pela bela mulher que assombra os seus sonhos sem a presença onipresente das paredes de arquivos, das luzes neon, dos cartazes desgastados com chavões governamentais – que remetem diretamente a 1984 (1984) – e sem as labirínticas estruturas, sempre baseadas no cinza, no bege, no marrom e outras cores neutras e sem vida.

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Porém, tanta estranheza proposital poderia afastar o espectador da obra e, portanto, de sua mensagem. O que, felizmente, Gilliam consegue contornar ao fazer de Sam um homem coerente. Apesar de achar normal as constantes e diárias cirurgias plásticas da mãe e não questionar a bizarrice que é o seu chefe andar com um indissolvível bando de secretários pra todos os lados, o nosso protagonista parece aceitar aquela loucura toda mais por cansaço do que por conivência. Ao constatar o aquecedor do seu apartamento quebrado, por exemplo, demonstra um tédio imenso por saber a burocracia com que vai ter de lidar para conseguir o conserto. Algo com que qualquer cidadão de um grande país, como o próprio Brasil, pode se identificar quando tem de abrir uma conta num banco, fundar uma empresa, se matricular numa faculdade, ou apenas fazer registros obrigatórios, como o de nascimento, óbito ou identidade. Assim, torna-se cômico notar como a “donzela” idealizada por Lowry passa o filme inteiro tentando juntar os formulários e realizar os procedimentos corretos apenas para encaminhar uma simples reclamação sobre um terrível erro cometido justamente por um processo burocrático. Afinal, esse acabou custando a vida de um homem que, para o grande sistema, era apenas um erro de digitação.

Assim, o longa-metragem, lançado em 1985, comenta sem autocensura alguma a situação na época do país que lhe dá nome – ainda que, repito, o lugar jamais seja chamado de Brasil. Os militares, aqui, são agentes de uma política cega para com as pessoas, conseguindo discernir apenas produtos de funcionários. E o local em que as pessoas são levadas pelas forças coercitivas para serem torturadas é chamado pelo cínico eufemismo de Ministério de Recuperação de Informações. Tudo em prol da máquina social, do mercado e o capital girando, indiferente às tragédias alheias – e, obviamente, um atentado terrorista no meio de um restaurante de alta-classe não é o suficiente para que os clientes parem o seu jantar, e nem mesmo é preciso que seja Natal para que presentes em nome da data sejam distribuídos o tempo inteiro. Uma crítica ácida, claro, também ao governo Thatcher na Inglaterra, origem da produção.

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Embalado ainda por uma trilha sonora inteiramente baseada na canção Brasil, de Ary Barroso, Brazil: O Filme é do início ao fim permeado por esse tom de alegria artificial, produzida e reproduzida, se apresentando como uma obra que, se funcionava como crítica quando foi concebida e continuou sobrevivendo como uma diversão inteligente, hoje segue melancolicamente atual em seus comentários. E se a rima final da canção é uma afirmação, hoje, porém, lhe caberia melhor um ponto de interrogação antes que sua última estrofe cortasse para os créditos: “Return I will, to Brazil?”.

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é formado em Produção Audiovisual pela PUCRS, é crítico e comentarista de cinema - e eventualmente escritor, no blog “Classe de Cinema” (classedecinema.blogspot.com.br). Fascinado por História e consumidor voraz de literatura (incluindo HQ’s!), jornalismo, filmes, seriados e arte em geral.
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