Crítica


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Sinopse

Aos 30 anos, Dirceu trabalha numa empresa de demolição. Esse sujeito que vem de uma família aristocrática do sertão nordestino participa ativamente das transformações de sua cidade. Ao encontrar-se com Maria, estudante de música, ele passa a questionar suas prioridades.

Crítica

A sinopse afirma: “Dirceu, filhos de latifundiários do interior de Pernambuco, se apaixona por Maria, uma sertaneja que estuda música na capital e cujo espírito livre perturba o mundo do rapaz”. Talvez fosse possível afirmar que Boa Sorte, Meu Amor é apenas isso, mas seria um imenso reducionismo em relação a todas as surpresas e qualidades que o trabalho de estreia de Daniel Aragão apresenta. Estas duas linhas servem somente como um guia, mas o filme vai além do mero relato narrativo para conduzir o espectador por um mundo expressionista, carregado de quadros fortes, frases bem colocadas, reações extremas e reflexos de uma sociedade à beira de uma crise, da qual provavelmente não se tenha volta. O retrato é pessimista e a conclusão pode ser cruel, mas se por um lado somos arraigados às nossas origens e tradições, por outro ninguém melhor do que o próprio ser humano para conseguir mudar o que de fato deseja.

Na primeira cena, vemos Dirceu (Vinicius Zinn) sentado à mesa junto com o pai (Rogério Trindade). Este é um senhor de terras no interior, e narra ao filho um antigo costume local: os patrões estupravam suas escravas, e o melhor método anticoncepcional era estrangulá-las após o coito. Um destes fazendeiros, no entanto, decidiu manter uma menina, transformando-a em sua escrava sexual particular. Com ela teve 5 filhos, e após a morte da esposa oficial, mais de 30 anos depois, a amante passou a ocupar a cama principal. Essa mulher seria a bisavó do rapaz. E dessa mistura temos o nordeste de hoje, que ainda aspira um regime feudal ao mesmo tempo em que se coloca em um mundo contemporâneo e cada vez mais vertical, sem espaço para respiros ou descansos. A vida de Dirceu começa a mudar quando encontra Maria (Christiana Ubach), uma jovem que também veio do interior, mas não em busca de estabilidade financeira. Ela quer ser livre. Quer sonhar, ousar, viver. Não quer estar com os pés no chão, pois busca algo que não se encontra nos limites que o horizonte de Recife oferece.

O relacionamento dos dois começa, mas logo ficam evidentes as diferenças entre eles, até que se deparam com um ponto de mudança. O que será feito a partir daí? Fincar raízes ou fugir para o mundo? E se a saída parece ser o caminho, como ficará o outro, aquele que foi abandonado. Neste momento o filme se envolve no tormento enfrentado pelo personagem, e as sensações passam a ser muito mais fortes do que as oferecidas até então. Deixa-se de lado um formato mais convencional de desenvolvimento da história para se apostar nas impressões. É quando a trilha sonora se torna mais intensa, a fotografia em preto e branco assume ares radicais e a edição transforma esta jornada em um perturbador pesadelo entre dois universos: a capital e o sertão, o moderno e o antigo, o novo e o velho, o passado e o futuro. É preciso muita boa sorte, pois qual amor conseguirá sobreviver a uma trajetória como essa?

Premiado como Melhor Filme pelo Júri Jovem no Festival de Locarno, na Suíça, onde estreou mundialmente no início de agosto, Boa Sorte, Meu Amor é resultado da experiência de Daniel Aragão após quatro curtas-metragens premiados no Brasil e no exterior e o envolvimento em outros longas, como quando foi assistente de direção em Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), de Marcelo Gomes. Auto-definido como um “antirromance do impacto entre a música e o silêncio”, é uma obra feita para públicos restritos, que aceitem embarcar na jornada proposta pelo diretor. Estes, no entanto, serão recompensados por uma visão bastante singular sobre o hoje, com reflexões a respeito dos caminhos trilhados pelo Brasil atual e como esta geração irá se deparar com os problemas de amanhã.

Boa Sorte, Meu Amor faz parte também do excelente momento vivido pelo cinema pernambucano, um dos estados com a melhor produção atual. Tanto sua estrutura, dividida em capítulos, como a própria temática que carrega, se assemelha com outro longa recente de mesma origem, o impactante O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho, premiado no Festival de Gramado. Mas enquanto esse investe numa estrutura mais convencional e consegue envolver e incomodar somente com a força do seu discurso, Aragão decide fazer uso de outras muletas, como imagens carregadas, cenas de impacto, ausência de explicações e contextos subentendidos. O resultado é mais sensorial do que lógico. Definitivamente, uma escolha arriscada, mas do que seria a arte sem a capacidade de ousar?

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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