Crítica


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Sinopse

Cid Moreira é uma lenda vida da televisão brasileira. Ele narra a própria história, descontruindo mitos, trazendo à tona episódios pessoal e coletivamente determinantes, transitando conosco por um labirinto de memórias.

Crítica

A diretora Clarice Saliby encontra um tom singular para seu retrato sobre Cid Moreira. Diante de um homem de fala solene e porte sisudo, ela evita uma narrativa convencional, do tipo que resgataria os primeiros passos, a ascensão no jornalismo, a consagração etc. O roteiro está pouco interessado na cronologia dos fatos, deixando que seu personagem evoque, como anedotas, os eventos que julgar necessários. As poucas fotografias de arquivo são apresentadas em mãos pelo apresentador, ao invés de incorporadas à edição para melhor visualização do público. O filme se concentra no tempo presente, ou seja, no momento em que Cid Moreira possui mais de 90 anos. Sem qualquer vaidade, ele circula pela casa com uma camiseta velha, satiriza a si mesmo ao conversar com a Siri dos telefones celulares, pergunta à cineasta se ela está contente com sua narração, ou se ele deveria tentar mais uma vez. Há uma quantidade expressiva de humor, seja pela despretensão com que o protagonista comenta sua jornada, seja pela decisão da cineasta em não provocar zonas de conflito. Percebe-se a tentativa de desvestir a imagem do homem-reportagem, introduzindo outra, a do senhor idoso que usa termos chulos e ri de suas locuções passadas.

O documentário sabe usar a seu favor a voz icônica do personagem. Ao invés de limitá-lo à condição de objeto de estudo, faz questão de incorporá-lo à criação, permitindo que dirija narração de sua própria vida. Boa Noite (2019) torna-se uma experiência metalinguística, e também um filme-processo: vemos o texto escrito para a leitura de Cid Moreira (sobre o próprio Cid Moreira), além das diversas versões gravadas pelo mesmo. Ele reencena trechos de sua vida (o dia em que ficou preso dentro de uma sauna), assiste ao material bruto diante da diretora e questiona o uso do som, da trilha sonora, dos efeitos. Ironicamente, boa parte do filme se situa no encontro do homem nonagenário com a tecnologia atual: ele revela seu conhecimento em manipulação sonora, ou ainda a possibilidade de gravar sua voz e reescutá-la imediatamente depois. A questão da passagem do tempo, e da evolução desta profissão, é muito bem representada pela transposição do homem conhecido na televisão ao cinema digital contemporâneo. Dotado de apurado senso crítico em relação à sua voz, mas não à sua imagem, ele contribui a efetuar uma cisão estética frutífera, e novamente cômica, entre o despojamento total da imagem (o corpo idoso na sauna, a cena no cabeleireiro) e a busca de precisão quanto ao som.

A excelente montagem de Eva Randolph e Yan Motta contribui a este olhar ao mesmo tempo fraterno e nada idealizado. A junção de cenas díspares provoca comicidade: um telejornal antigo em que o apresentador anuncia a meteorologia adversa é combinado com a filmagem atual de um dia chuvoso; uma leitura afetada da Bíblia é sobreposta ao jogo de carteado com a esposa e um amigo. Mistura-se alegremente o sagrado e o profano, a representação e a realidade, o passado e o presente. No entanto, os montadores sabem quando é necessário se ater à gravidade dos fatos. O direito de resposta de Leonel Brizola após o violento editorial do Jornal Nacional é reproduzido na íntegra, para que o espectador também testemunhe este momento da história a respeito da manipulação das mídias, pela voz de Cid Moreira. O rosto levemente perturbado do apresentador, quando é informado em plena gravação sobre o falecimento da mãe, também adquire um tempo extenso, contemplativo. O projeto se permite rir com Cid Moreira, personagem do imaginário brasileiro, mas jamais ri de Cid Moreira. Afinal, o despojamento soa orgânico: ao invés de uma construção forçada da diretora, é o apresentador quem se demonstra visivelmente confortável com a presença da câmera em sua casa.

Boa Noite não constitui um projeto particularmente reflexivo ou inquisidor. Isso não significa, entretanto, que ele possua qualquer forma de ingenuidade em relação aos temas abordados. O filme faz questão de incluir um posicionamento do protagonista sobre o apoio da Rede Globo à ditadura militar. A saída evasiva de Cid Moreira (“Eu não gosto de política. Sou apolítico”) diz muito sobre a maneira como ele se enxerga, enquanto mero leitor e apresentador. Afinal, em suas palavras, os textos não são dele, e tampouco as opiniões expressas. Há notável ingenuidade, ou talvez um fundo do cinismo, em se acreditar isento de responsabilidade a respeito de passagens como estas, quando a voz e a imagem do apresentador estão claramente vinculadas ao discurso proferido a milhões de brasileiros. Mesmo assim, a omissão constitui um posicionamento político em si mesma. Outros temas estimulados tampouco produzem ruído na narrativa, a exemplo do afastamento da bancada do Jornal Nacional e da relação com a religião católica após a narração de trechos da Bíblia. A direção faz sua parte em buscar zonas de esclarecimento, sublinhando a intenção de expandir o projeto para além da interação diária. O fato de serem ignoradas por Cid Moreira diz tanto sobre este homem “apolítico” quanto sobre a corporação que ele representou durante tantas décadas.

O projeto apresenta outro elemento particularmente interessante. O cinema documentário costuma de dedicar às figuras de grandes criadores, como músicos, artistas plásticos e atores. São pessoas adoradas por suas mentes brilhantes, sua criatividade ou senso de inovação. Ora, Cid Moreira não teria criado nada propriamente dito. Ele se dissocia do conteúdo narrado, e tampouco se considera um ator das leituras bíblicas em CD. Nem mesmo o estilo empostado, os “r” reforçados são de sua autoria, conforme atesta no início. O homem se tornou um ícone, uma voz lendária, ainda que esvaziada do conteúdo – o mesmo tom foi empregado para narrar golpes de Estado, a previsão do tempo e um trecho de Eclesiastes. O porta-voz da política não se interessa por política; o intérprete de versículos bíblicos não se mostra profundamente religioso. A voz do protagonista se torna uma estética ajustada, em golpes de marketing, aos conteúdos mais díspares. Ainda que possa se orgulhar de tudo o que construiu, vivendo em uma casa confortável e tendo seu nome inscrito no Guinness Book – O Livro dos Recordes, Moreira não criou nada. O encontro entre uma voz tão potente com um discurso tão escorregadio (do apresentador, não do filme) produz o misto curioso de fascinação e autoparódia. Cid Moreira constitui um querido artista sem arte.

Filme visto online no 25º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, em setembro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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