Crítica

Embora formem um casal, homem e mulher caminham separadamente e com pressa na localidade que lembra o Rio de Janeiro, num calçadão com o verde da natureza invadindo as encostas. O homem e o cimento convivem e se desencontram até se encontrarem. A mulher se senta no meio fio, está cansada e quase sem fôlego com a alta temperatura. Ele vai até ela segurando uma garrafa, logo depois respingando bruscamente água em seu rosto. Ela aceita o frescor com uma sensualidade ímpar. Essa cena, uma das iniciais de Beduíno, resume de forma bem didática um dos meandros da narrativa de Júlio Bressane. É sobre as relações interpessoais e seus reveses.

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Na produção, exibida em seleções paralelas de festivais como Locarno e Brasília, somos colocados entre esse casal interpretado por Fernando Eiras e Alessandra Negrini. Eles discutem a relação, o onírico, passeiam por obras de arte, de arquitetura e até mesmo pela própria obra de Bressane. O cinema do diretor se mostra mais uma vez fora da curva do âmbito nacional. Bressane desconstrói o que assistimos, quebrando a magia dos bastidores e, ao mesmo tempo, lançando ao espectador a oportunidade de avançar pela imaginação. É um exercício exemplar que Bressane propõe à plateia, o fazendo de maneira espetacular. Ele inicia o filme com a câmera que caminha pelo set de filmagem com uma máscara de fechadura. É uma cartolina na frente da câmera. E daí? É simples e direto. E é com esse didatismo e sinceridade contidos em seus mecanismos que o filme ganha o espectador aberto a experienciar.

Mesmo que muitos gostem de reclamar da dificuldade de adentrar na estética de Bressane e de compreender seu cinema filosófico, sensorial e teatral, Beduíno é acessível dentro da proposta de imaginário que traz. Aqui ele explica ao seu espectador a ficção e a metalinguagem, até mesmo fazendo citação ao seu próprio trabalho, caso do filme o Estrangulador de Loiras (1971), mais ao final da projeção. O casal emula vários casais e se questiona em alguns momentos sobre quem realmente são e o que desejam. Seriam muitos casais construídos refletindo outros, longe da ficção? Como ser verdadeiro em uma relação?

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Por mais que o filme traga como nome a característica do personagem masculino, quem o carrega e o desenvolve de maneira excepcional é a figura feminina, em uma interpretação estupenda de Alessandra Negrini, sensual, com bom timing e muito bem fotografada pela dupla Pepe Schettino e Pablo Baião. Vale destacar a belíssima cena do trem em que a câmera viaja pelo corpo da atriz junto do vagão. Podia ser até mesmo uma referência ao filme de Emeric Pressburger e Michael Powell Sei Onde o Paraíso Fica! (1945). A cena no longa de Bressane ganha um tom de sensualidade pouco vista no cinema nacional atual. Os diálogos são pontuais e, em alguns casos, se tornam belíssimos monólogos mesmo com um texto um tanto engessado, isso devido às performances de Eiras e Negrini, que conseguem com êxito trazer frescor. Aliás, muito similar ao frescor que a mulher sente ao ter a água jogada em seu rosto no começo da exibição.

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é graduado em Cinema e Animação pela Universidade Federal de Pelotas (RS) e mestrando em Estudos de Arte pela Universidade do Porto, em Portugal.
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