Barravento

Crítica

Primeiro longa-metragem dirigido por Glauber Rocha, Barravento pode ser considerado também como o marco inicial do movimento Cinema Novo – principalmente considerando o comentário de Nelson Pereira dos Santos sobre Glauber ser o próprio movimento. É interessante notar, nesse sentido, como o filme carrega, estética e narrativamente, alguns debates e tensões próprios do cinemanovismo brasileiro. Inicialmente um projeto do cineasta baiano (como Glauber) Luiz Paulino dos Santos, Barravento se passa numa pequena vila de pescadores, quase todos negros e praticantes do candomblé, que, explorados pelo dono da rede que usam em seu ofício, têm que lidar com o retorno à comunidade de Firmino (Antonio Pitanga), que abandonara a vida no mar para migrar à cidade e, agora, tenta conscientizar seus conterrâneos sobre sua condição social e a necessária luta por libertação.

Na superfície de Barravento está o embate entre alienação e consciência revolucionária, entre mitos religiosos e o materialismo transformador. E Glauber, num momento em que o Cinema Novo se aproximava de uma produção cultural que se atribuía a função de educar o povo à revolução (produção advinda, sobretudo, do Centro Popular de Cultura da UNE), naturalmente se colocaria, no filme, ao lado de Firmino, portanto crítico ao candomblé. A esse respeito, aliás, o pesquisador de cinema Ismail Xavier comenta no livro Sertão Mar que Barravento foi, durante algum tempo, contrastado ao cinema produzido por Nelson Pereira dos Santos nos anos 70, principalmente O Amuleto de Ogum (1974) e Tenda dos Milagres (1977): enquanto Glauber atacava, com o marxismo, as práticas religiosas de origem africana, Nelson as abraçava nesses dois filmes, construindo suas respectivas narrativas de acordo com uma lógica própria do candomblé.

No entanto, é possível, a partir das reflexões do próprio Xavier, interpretar Barravento para além do discurso de Firmino, escapando de confundi-lo com o do diretor. Se naquele momento de sua trajetória Glauber parecia concordar politicamente com o protagonista de seu filme, é visível como a narrativa construída por ele é também movida por uma lógica mágica. O elemento sobrenatural intervém nela (o próprio Firmino atua em diálogo com esse sobrenatural que ele busca desacreditar) e o diretor se revela absolutamente apaixonado pelos rituais que filma. Os momentos de Barravento em que o candomblé se faz presente, aliás, são os mais belos de todo o filme, pois pulsam na tela, vibram com uma energia que implode o discurso racional do marxismo e parece anunciar o transe como motor do cinema que Glauber faria dali em diante.

Barravento é, num primeiro olhar, o filme de Glauber Rocha de mais fácil digestão, por possuir uma narrativa que progride com clareza e por trazer em sua superfície um sentido político aparentemente óbvio – já que apresentado com o didatismo esperado do marxismo nacional-popular próprio da produção cultural de esquerda de sua época. No entanto, subterraneamente, o filme introduz no cinema de Glauber a predileção estética e narrativa pelo mágico, que se manifestaria com maior intensidade em seus filmes seguintes. Nesse sentido, Barravento é muito mais sofisticado e instigante do que outros exemplares dessa fase inicial do Cinema Novo, como Cinco Vezes Favela (1962) e Ganga Zumba (1964), esses sim presos num esquema formal excessivamente didático, submetidos a sua mensagem política.

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Wallace Andrioli

é um historiador que fez do cinema seu maior prazer, estudando temas ligados à Sétima Arte na graduação, no mestrado e no doutorado. Brinca de escrever sobre filmes na internet desde 2003, mantendo seu atual blog, o Crônicas Cinéfilas, desde 2008. Reza, todos os dias, para seus dois deuses: Billy Wilder e Alfred Hitchcock.

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