Crítica


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Sinopse

Num mundo mágico, a Barbieland, uma das bonecas começa a perceber que não se encaixa como as demais.

Crítica

Em O Mágico de Oz (1939), Dorothy é uma menina em busca de algo excitante. Transportada da realidade sépia do Kansas, nos Estados Unidos, para a multicolorida Oz, ela se depara com uma terra repleta de criaturas e situações além de sua imaginação. Podemos ainda citar Alice, aquela que transitou pelo País das Maravilhas, como outro paradigma desta figura: a garota que vive aventuras num cenário irreal e fantástico. Portanto, ainda que comece quebrando o gelo com a brincadeira envolvendo 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), Barbie tem como protagonista mais uma jovem que descobre novos propósitos ao ser inserida em contextos bem diferentes dos seus. Interpretada por Margot Robbie, a boneca Barbie tem um cotidiano repetitivo e parece cem por cento feliz. Diferentemente do que prega o senso comum, a rotina não lhe traz tédio. A reprodução repetitiva de gestos, afazeres e encontros gera uma sensação de satisfação por entorpecimento. E isso tem a ver com a sua ignorância. Nesse badalado longa-metragem dirigido por Greta Gerwig, é extremamente importante localizar as fontes do conhecimento e como se dão os processos de conscientização dos personagens. No começo tudo é uma grande festa com metalinguagem correndo solta. Barbie se banha sem água, finge beber algo e flutua em direção ao seu destino, ou seja, é privada dos instantes intermediários entre as coisas “importantes”. É provocativa a concepção de felicidade virando prêmio a um produto obediente e conformado.

Num sentido simbólico, a vida de Barbie parece um programa “instagramável”, um feed de rede social no qual há apenas cor, alegria e zero tristeza. E esse é um dos pontos de contato que o roteiro a cargo de Greta Gerwig e Noah Baumbach estabelece com a nossa realidade. O mundo plastificado e inabalável de Barbie começa a entrar em colapso quando a compreensão sobre a morte lhe atravessa como um trovão em meio à dança apoteótica. O pensamento que faz a música parar provoca uma fratura nessa existência pré-programada. Vamos prestar atenção à fonte do conhecimento na qual Barbie vai beber para entender o achatamento de seus pés, a aparição de celulites, entre outras quebras nessa festa eterna. Barbie busca sabedoria com a chamada Barbie Danificada (Kate McKinnon), habitante da Barbielândia deformada pelos anos de utilização como brinquedo de uma menina espoleta. Portanto, a Barbie Estereotipada (Robbie) recebe esclarecimentos de alguém distante da perfeição que caracteriza ela e as demais, por uma “danificada” pela passagem do tempo – que mora no alto da colina, como se fosse vampira ou o Edward Mãos de Tesoura do filme homônimo de Tim Burton. Ela é a mentora estigmatizada cuja liderança também reflete um árduo processo de transformação. A ida de Barbie ao mundo real a fim de entender o que ocasionou sua perturbação é o ponto a partir do qual nada será como antes. Além do mais, o filme apresenta diversas citações cinematográficas.

Greta Gerwig constrói Barbie com um misto de fanservice (há inúmeras alusões a versões da boneca lançadas ao longo das décadas), filosofia existencialista devidamente simplificada a fim de caber numa superprodução para consumo massivo, empoderamento e intertextualidade. Passemos a Ken (Ryan Gosling), personagem que canonicamente existe à margem de Barbie, como complemento da boneca mais famosa de todos os tempos. Gosling interpreta esse tipo com deliciosa e consciente canastrice, fazendo dele um boneco de ego frágil, disposto à agressividade e que age basicamente para ser notado. Trazendo à vida real, ele poderia ser comparado a um desses sujeitos que proferem discursos de valorização do masculino às custas de toneladas de misoginia. Uma vez no mundo real, Ken se depara com uma coletividade cujas engrenagens o favorecem muito porque, ao contrário da Barbielândia, trata-se de uma sociedade desproporcionalmente benéfica ao homem. Em determinado momento, Barbie diz algo do tipo “tenho a sensação estranha de desconforto, não sei de onde vem”, enquanto Ken está pleno de felicidade no contexto em que seu corpo não corre riscos por simplesmente existir.  O discurso feminista é reafirmado constantemente e, sobretudo depois do essencial retorno à Barbielândia, ele fica ainda mais marcado como força motriz dessa produção que traz ao time dos blockbusters a possibilidade de discutir alguns dos mais nocivos males da nossa realidade.

Convém não perdermos de vista que Barbie é de um grande estúdio norte-americano, por isso construído dentro de uma lógica de dominação e lucratividade que permite a existência da ideia de revolução desde que ela caiba adequadamente num modelo comercializável. De preferência, com a responsabilidade social virando um valoroso commodity e transmitindo a sensação de que capitalistas se preocupam verdadeiramente com revoluções. Essa leniência engraçadinha com o mundo corporativo está na representação da Mattel, empresa detentora dos direitos de produção e venda da Barbie. A crítica à diretoria masculina é menor do que o idealismo altruísta do CEO interpretado por Will Ferrell. A versão ficcional da Mattel até carrega tendências erradas, mas ela ratifica a mudança, importância que reforça o discurso liberal. Dito tudo isso, quando chega o momento de enfrentar o vilão, o mais significativo é perceber que o enredo refuta a simplificação do “nós contra eles”, depois de esgotadas as brincadeiras com guerras de artigos de praia e batalhas de dança. Greta Gerwig defende nessa utopia bonita e visualmente suntuosa que homens e mulheres precisam combater de mãos dadas as engrenagens milenares do patriarcado, pois elas fazem mal a todos. A empatia é a grande força conciliadora da trama, vide a compreensão dos motivos que levaram Ken a aderir às promessas de poder, as desculpas pedidas à Barbie destoante do padrão e o entendimento entre mãe e filha sobre individualidade.

Em meio à exuberância dos figurinos e da direção de arte, Greta Gerwig retrabalha o conceito de liberdade como fruto da conscientização, algo embutido na Saga Matrix – parodiada na cena em que Barbie precisa escolher entre saltos altos ou calçado baixo. A protagonista interpretada com excelência por Margot Robbie se depara com as verdades sobre a condição feminina. Então, ciente da tensão entre inspiração e opressão por meio de sua beleza estereotipada, bem como da ânsia masculina por poder às custas da submissão feminina, Barbie nunca mais será a mesma. Talvez ela nunca mais seja tão fulgurante, mas seus momentos de alegria serão genuínos, não acessórios pré-programados de vida. Barbie certamente não mudará a percepção do mundo a respeito da opressão às mulheres, afinal de contas apenas o cinema comporta esses contos de fadas em que heroínas adquirem conhecimentos fundamentais em meio às jornadas catárticas de iluminação. Mas, certamente é empolgante ver uma produção dessas, anabolizada por milhões de dólares, tocar em assuntos espinhosos de modo direto e eficiente. Equilibrando bem o humor e o drama, o novo acerto de Greta Gerwig é uma bem-vinda caminhada de emancipação que elege o conhecimento como o grande poder que retira mulheres do torpor e as mobiliza a se unir em prol de uma mudança. Diferentemente da Dorothy, que volta ao Kansas natal dizendo “não há lugar como nosso lar”, Barbie transforma em lar o lugar onde deseja estar.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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