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Sinopse

Jovem trabalhador de um museu, muito admirado por colegas e frequentadores, Julius convida os parceiros de trabalho para um passeio de barco com a sua família aristocrática. Mas Julius não é quem parece ser.

Crítica

Julius (Moritz von Treuenfels) é um personagem fascinante. À primeira vista, ele possui uma aparência completamente banal conforme transita por um museu na função de vigia e supervisor. O jovem pede aos visitantes que parem de fotografar, e alerta o colega novato sobre um frequentador bebendo perto dos quadros. O universo deste homem está pautado por regras específicas, comuns a todos, que ele aparenta cumprir sem hesitação. Passadas algumas cenas, começamos a perceber um comportamento estranho: ele tem um ataque de raiva contra os amigos, com quem planeja uma viagem de barco; narra histórias estranhas e rocambolescas que teria vivido com a mãe; mostra-se irritado em conversas filosóficas acerca de Deus, do determinismo, das possibilidades de transformação do indivíduo. O homem defende com fervor cada uma de suas ideias ou decisões, algumas delas de aparência espontânea, irrefletida. Em especial, associa-se a inúmeros projetos frustrados: um passeio luxuoso abortado, um relacionamento sério encerrado, um estágio de trabalho inalcançável, uma coabitação terminada com os colegas de apartamento. Julgando por suas palavras, Julius leva uma vida fascinante, embora nunca a presenciemos de fato em imagens. Existe uma distância fundamental entre ideia e imagem, ou entre o sonho e os fatos consumados. O herói vive numa espécie de hiato.

Isso decorre do fato que Julius mente. O diretor Jöns Jönsson evita apresentar este fator ao público com antecedência, tomando a precaução de não definir seu protagonista pela mitomania. No entanto, ele mente muito, sem parar, a respeito de coisas gigantescas ou minúsculas. Ele seria um arquiteto famoso, compositor musical ou vigia de museu, de acordo com o interlocutor à sua frente. As histórias escutadas por terceiros logo se tornam suas, e quando pego em contradição, encontra habilmente uma nova invenção capaz de justificar, ainda que de maneira tênue, as narrativas compartilhadas com os amigos. O personagem não tira qualquer proveito financeiro nem simbólico das anedotas compartilhadas, de modo que podemos descartar as acusações de oportunismo, ou de uma índole inerentemente perversa. O interesse ao espectador reside nas raízes misteriosas deste comportamento: por que Julius cria versões fantasiosas de sua rotina? A mãe idosa e o irmão demonstram pleno conhecimento da tendência delirante do garoto, razão pela qual o mantêm à distância. Aos amigos, e ao espectador, cada novo truque constitui uma surpresa. Por que continua acrescentado dados aos episódios fantasiosos, correndo o risco de ser pego na própria ficção? Até quanto poderá sustentar as falsidades facilmente comprováveis, e a quem poderá recorrer no caso de dificuldade, visto que costuma queimar as pontes com os conhecidos, partindo adiante sem olhar para trás?

Devido a estes fatores, Axiom (2022) carrega um teor simultâneo de drama, suspense e comédia absurda. As imagens elegantes, impecavelmente iluminadas e enquadradas, se prestam tanto à idealização quanto a um registro crítico, pois hiper realista. Na sala de cinema, as pessoas se agitavam nervosamente nas poltronas, soltavam frases de “Não acredito!” aos colegas, indagavam-se a respeito do que estavam vendo. Ora, quando nosso narrador se torna pouco confiável, tendemos a desconfiar de tudo o que se apresenta à frente: ele teria realmente uma namorada chamada Marie, conforme declara à mãe? O ataque de epilepsia às vésperas de uma viagem prometida ao fracasso (posto que o barco familiar nunca existiu) teria sido real, ou simulado? O que nos garante que amigos e colegas de quarto estejam falando a verdade perto dele? Podemos confiar em alguém? O espectador é ativamente convidado a participar do dispositivo de manipulações: a imagem pode estar dissociada da verdade. Isso não significa que, rumo ao final, alguém será desmascarado, e se restabelecerá a ordem. Jönsson evita criar vilões e mocinhos, ou promover uma redenção ao herói de moral ambígua. Ele prefere se focar nas maneiras encontradas por Julius para sustentar sua autoficção a puni-lo pelos atos — a ausência de julgamento constitui um dos aspectos mais perturbadores, e também satisfatórios da relação entre o dispositivo e o personagem. 

Teria sido fácil situar o espectador num ponto de vista externo, ou colado a alguma figura ao redor (a namorada, os familiares). O filme encara um desafio maior, e mais recompensador: enxergamos o mundo pelos olhos do rapaz, e mesmo assim, não o compreendemos. A impressão de ter acesso a todas as informações, e ainda assim, ser incapaz de decifrá-las promove uma relação hipnótica de espectatorialidade. Enquanto isso, Moritz von Treuenfels comanda o espetáculo com uma naturalidade excepcional. Ele constrói um protagonista leve, seguro de suas ações, e agradável de ter por perto — o contrário da percepção de um sujeito mau-caráter. Julius compartilha com propriedade tanto as histórias surreais quanto as discussões reais de cunho existencial (em algum momento de seu percurso, ele certamente teve contato com conceitos fundamentais de filosofia). Assim, Julius está longe de constituir apenas um mentiroso compulsivo: existe muita verdade e sinceridade no que diz, cabendo ao espectador discernir as invenções criadas por prazer, por instinto de sobrevivência, e aquelas onde ele parece de fato acreditar no que diz. O comportamento das figuras coadjuvantes diverge da perseguição que provavelmente dominaria um suspense hollywoodiano: ninguém colhe provas para pegá-lo em contradição definitivamente, apenas tateia o terreno e o testa de maneira sutil, utilizando suas cartas nas horas apropriadas. Em se tratando de um jogo, os demais participantes se mostram tão inteligentes quanto ele. 

Axiom consegue fugir ao caminho espetacular, de recompensas emocionais fáceis, preferindo criar essencialmente uma mistura entre suspense psicológico e teatro do absurdo. Aqui, o real está levemente deslocado, para o bem (todos se divertem bastante com as histórias do protagonista) ou para o mal (as pessoas sofrem com a descoberta das fabulações). Ainda que revele muitos dados ao espectador, sairemos da sessão sem compreender a totalidade da jornada — não por um efeito surpresa, mas por se tratar de um cenário complexo, de difícil definição. Como devemos nos sentir em relação a Julius? Rejeitá-lo, abraçar suas atitudes, temer por ele? O dispositivo se aproxima e se afasta do vigia de museu ao mesmo tempo — quanto mais tempo passamos ao lado do rapaz, menos saberemos de suas motivações internas. Trata-se de uma produção excelente para nossos tempos de desinformação e fake news: embora Julius não obtenha qualquer ganho político com a disseminação das histórias, ele representa uma vontade compulsiva de ficção, uma tendência doentia a dispensar o fato em prol opinião, e a verdade em nome do ideal, até romper com a fronteira separando ambos. Se o mundo pode ser o que eu quiser, por que me contentaria com uma rotina entediante? Entre a realidade e a ficção, pode-se imaginar qual caminho o herói amoral escolherá.

Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2022.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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