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Sinopse

Enquanto alunos do 3º ano do ensino público no interior do Sergipe se preparam para a prova que pode determinar o resto de suas vidas, o documentário retrata as angústias e os prazeres da adolescência através de seus gestos, inquietações e conquistas.

Crítica

O modo como o diretor João Jardim e sua equipe entram numa escola do Sergipe constitui um fator determinante para todo o documentário. Pelas condições estruturais da sala de aula, pela bola desgastada na Educação Física e pela atividade esportiva num gramado sem cuidados típicos de uma quadra, percebe-se que este estabelecimento público de ensino enfrenta dificuldades financeiras. No entanto, o cineasta não possui a intenção de efetuar denúncias. Quando mergulha no dia a dia das salas de aula, acompanhando os cursos do 3º ano do Ensino Médio, o autor tampouco se preocupa em questionar o nível dos professores, dos alunos, ou ainda o conteúdo veiculado aos jovens. Em primeiro lugar, o cineasta foge a julgamentos morais ou políticos de qualquer espécie. Ele se coloca na posição empática de observador, um colega disposto a escutar o que aqueles jovens e adultos tiverem a lhe oferecer. Por isso, Atravessa a Vida (2020) transparece tamanha sensação de espontaneidade: a câmera está atenta ao carinho entre alunos no fim do pátio, ao olhar interessado de um aluno durante a aula de História, e ao descaso da colega que quase dorme durante o mesmo curso.

A estética se mostra bastante apurada para um olhar tão dependente de situações incontroláveis. Na maior parte do tempo, a presença da câmera não aparenta interferência na dinâmica presente. Isso significa que os alunos não agem para as câmeras, de maneira mais comportada ou mais extrovertida por estarem sendo filmados, preservando uma naturalidade difícil de captar, sobretudo em frente a adolescentes tão dispersos nos estudos. Exceto pela câmera giratória ao redor do círculo escutando música (movimento intrusivo demais, despertando incômodo nos jovens), e da caminhada diante das irmãs gêmeas, os movimentos resultam fluidos e organicamente inseridos naquele contexto. As equipes de fotografia e som impressionam pela capacidade de seleção de olhar e das falas dentro de um ambiente marcado por diversas atividades simultâneas. Mesmo em meio ao acalorado debate sobre aborto e pena de morte, os enquadramentos sabem muito bem quando se atardarem sobre um rosto específico (que ele esteja falando algo ou não), enquanto o trabalho de captação e edição sonora isola a fala mais interessante ao filme das conversas em paralelo e dos demais ruídos ao redor. Evita-se a sensação de caos para privilegiar o diálogo: a câmera escuta os personagens como se fosse um aluno adicional dentro da sala de aula.

Em oposição à percepção utilitarista do ensino (segundo o qual a escola serviria para preparar o indivíduo ao mercado de trabalho), Jardim está mais preocupado com a formação de cidadãos. Passando rapidamente pelas fórmulas matemáticas e pelas regras de português, ele privilegia as aulas de filosofia, sociologia e História, onde a sociedade se reflete mais facilmente dentro da sala de aula. Os alunos discutem política, racismo, eleições, suicídio, enquanto compartilham narrativas pessoais de abusos. Não descobrimos de que maneira eles se preparam para as provas de física ou química, mas presenciamos a reação da turma diante de canções de Chico Buarque sobre a ditadura militar, ou do Legião Urbana a respeito do duelo entre gerações. O discurso se descola do estudo enquanto obrigatoriedade de resultado (ou seja, enquanto performance), fugindo à discussão sobre notas e médias, para observar naquele grupo um retrato metonímico da nova geração de brasileiros, ainda bastante imaturos em relação à política, e repletos de ideias prontas transmitidas pelas gerações anteriores, porém dispostos a repensar suas posições diante de novos argumentos.

A escola se torna, portanto, um espaço de convivência e de afeto. O filme está interessado tanto em carinhos mais explícitos (a festa surpresa a uma professora de matemática) quanto em momentos furtivos, captados por uma câmera escondida (o choro da aluna junto à diretora, devido ao relacionamento conflituoso com os pais). Aos poucos, Atravessa a Vida toma a liberdade de convidar os alunos para falarem diretamente às câmeras, separados dos demais, contra o fundo da natureza. Neste instante, eles choram ao lembrarem o pai ausente, as amigas de quem devem se separar em breve, a luta da mãe na criação dos filhos. O olhar humanista possui o mérito de se comunicar com os adolescentes de igual para igual, escutando o que tenham a dizer com atenção, sem estabelecer qualquer forma de superioridade. No entanto, os close-ups nos rostos em prantos poderiam despertar alguns questionamentos. Por que o depoimento da garota com tendência suicidas seria dissociado da imagem referente (em cuidado com a ética desta fala), ao passo que outras denúncias de abusos ocorrem com os rostos fixamente enquadrados na imagem? De que maneira estas confissões sinceras viriam a impactar a vida dos jovens pós-filme? Ao mesmo tempo, por que manter as perguntas inaudíveis do diretor em off, sem o apoio das legendas presentes em outros momentos? Entre tantas cenas bem pensadas estética e discursivamente, as confissões para a câmera soam mais frágeis.

Além disso, a conclusão possui um teor ambíguo. Por um lado, a aula de sociologia com um professor explicando Marx e a organização de simulados do ENEM criam um ritmo de suspense para a realização da prova, anunciada enquanto clímax do documentário. No entanto, o filme jamais se preocupa até então com a aprovação no exame. Quando a imagem acompanha a contagem das provas e a chegada dos malotes ao local de realização da prova, a atenção soa exagerada para uma narrativa que sequer havia se debruçado sobre questões administrativas e práticas do ENEM (inscrição, o resultado do simulado, a chegada ao local da prova). Em paralelo, o término efetua uma curiosa descrição dos alunos por letreiros limitados ao nome e ao curso. Inscrições como “Pedro: Física” e “Marcelo: Biologia” reduzem estes jovens tão interessantes ao curso que escolheram, além de utilizarem linguagens desiguais entre eles. “Passou para Física”, “Passou em Odontologia”, “Vai tentar Pedagogia”, ou então apenas “Química” (Vai tentar? Passou?). O roteiro não sabe ao certo quando se interromper, estendendo-se até as primeiras aulas dos alunos na universidade e sugerindo que toda a preparação até então culminava nesta escolha: entrar ou não entrar na universidade. Para um projeto tão focado na formação de indivíduos pensantes, o encerramento soa redutor. Mesmo assim, o projeto torna a olhar para a escola enquanto ambiente dotado de complexidades humanas e pedagógicas. Ele valoriza o papel dos professores e a autonomia dos alunos em tempos de desinformação sobre a educação nacional e delírios a respeito de uma “doutrinação ideológica” muito distante da realidade destes jovens.

Filme visto no 25º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, em setembro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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