Crítica


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Sinopse

Dermi Azevedo é um jornalista incansável na luta por direitos humanos. Três décadas após o término da Ditadura Civil-militar no Brasil, ele vê retornarem práticas e pensamentos que imaginava sepultados.

Crítica

Há vários esforços que permeiam Atordoado, Eu Permaneço Atento. Esforço para a História não ser esquecida e, assim, talvez repetida em seus pontos nefastos. Esforço para as falácias não vencerem as verdades, a fim de que os discursos revisionistas dos defensores da violência não adulterem fatos. O curta-metragem de Henrique Amud e Lucas H. Rossi não se restringe a demonstrar que as coisas eram nada boas durante o regime que desmandou no Brasil por 21 anos com torturas, repressão e morte. A escolha do jornalista Dermi Azevedo para ser o narrador de uma trajetória em que pessoal e coletivo se misturam até praticamente serem indissociáveis é ao mesmo tempo formal e relativa ao conteúdo. Formal, pois o homem que sofreu incontáveis brutalidades nas mãos dos militares então no poder se esforça – continuando a utilizar o verbo – para vencer as barreiras impostas pelo mal de Alzheimer e nunca deixar de se lembrar de tudo. A voz embaralhada é a manifestação dessa vontade notável que desafia a enfermidade (e que aqui pode ser entendida como uma sequela literal/ simbólica). Quanto ao conteúdo, o sujeito é uma testemunha que oferece informações e prismas valiosos.

Henrique Amud e Lucas H. Rossi revelam Dermi fisicamente aos poucos. No começo, temos dele apenas a voz. Um pouco adiante, o pequeno recorte de seu olho. Mais à frente, o rosto completo do sujeito que carrega mágoas e marcas indeléveis. Aliás, é muito interessante que os realizadores não mostrem o rosto do protagonista sem antes apresentar uma imagem do exame que o enxerga cientificamente por dentro. E falando especificamente da imagem, Atordoado, Eu Permaneço Atento não se contenta com uma coleção de meras ilustrações daquilo que alguém está contando. A própria escolha de o quê colocar como pano de fundo às palavras de Dermi acentua um gesto político bastante definido. Há recortes familiares misturados com fragmentos de filmes, trechos que fazem parte de acervos públicos e/ou privados, tudo bem orquestrado em consonância com o que o jornalista fala. Nem sempre é uma filmagem/foto pessoal que auxilia as descrições verbais do personagem. E também nesse aspecto visual está a mistura entre os âmbitos públicos e privados, igualmente como se fosse quase impossível desalojar o primeiro estritamente do segundo. É um conceito.

Embora tenha percorrido festivais em 2020, Atordoado, Eu permaneço Atento ganha uma camada extra ao ser assistido em 2021, sobretudo depois do incêndio de um dos galpões da Cinemateca Brasileira, em São Paulo. Como toda crítica é uma interlocução entre o filme e o crítico no agora, vale ressaltar a desdobra certamente não prevista por Henrique Amud e Lucas H. Rossi, mas possível por ser constante a negligência com nossa memória. Enquanto Dermi comenta sua brava trajetória como militante pelos direitos humanos, falando de prisões e demais arbitrariedades do regime, se desenvolve essa operação instigante e complexa do ponto de vista imagético. Existe uma minuciosa comunicação entre texturas, origens, perspectivas, intervenções e tudo mais que os recortes possuem/ganham de singular. O panorama é coeso por abraçar vigorosamente as particularidades, ajudando a construir ideias amplificadas a partir das somas. E a película corroída pelo tempo é a lembrança se perdendo, a do protagonista doente e a do país que flerta novamente com aquilo que o aterrorizou há não tanto tempo assim. Se trata de um filme de posições muito bem definidas.

Henrique Amud e Lucas H. Rossi são bem-sucedidos com Atordoado, Eu Permaneço Atento também por acentuarem o crescendo de atordoamentos que, conforme é expressado no título, serve para permanecermos atentos (e, se possível, fortes). A narrativa de Dermi Azevedo deságua aos poucos na própria tragédia familiar. Ele se recorda de atrocidades, tais como as agressões militares ao filho quando o mesmo tinha menos de dois anos de idade. Quem não se sensibilizaria com um pai dizendo que seu menino teve a arcada dentária arrebentada por um marmanjo supostamente escudado por falácias, tais como a manutenção da ordem, da segurança e da família cristã brasileira? E os cineastas são muito sensíveis ao inserir essa barbaridade sem proporções. Eles evitam o sensacionalismo, se concentrando nas dificuldades de ressonâncias da voz marcada tanto pela enfermidade na atualidade quanto por uma coleção de sentimentos (indignação, culpa, tristeza, etc.). Além da importância sócio-política-ideológica-histórica, este curta-metragem vale o quanto pesam os seus arranjos cinematográficos que dão conta não apenas de dizer, mas de expressar e convocar à reflexão.

Filme visto no VI Cine Jardim: Festival Latino-Americano de Cinema de Belo Jardim, em agosto de 2021.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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