Crítica


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Sinopse

Alice e Tom estão passando por turbulências no casamento. Enquanto viajam para uma pequena temporada de descanso, o carro quebra na estrada e eles se veem impossibilitados de sair de uma casa que fica no meio do nada. 

Crítica

A dinâmica do casal em crise numa viagem que promete descanso (e a volta da felicidade) é recorrente no cinema. Ela está presente em histórias que vão do terror ao suspense, passando também pela comédia. Até a Noite Terminar traz algo de incômodo na sequência desse tipo que lhe serve de abertura. Nela vemos Alice (Simone Soares) e Tom (Milhem Cortaz) discutindo a relação enquanto rumam à paz do idílio campestre. Primeiro, os intérpretes parecem atuar em filmes diferentes. Enquanto Milhem tenta manter o timbre de voz, os gestos e as reações num registro mais naturalista, Simone está quase no extremo oposto, ou seja, apresenta uma composição afetada. Ela soa artificial ao empostar as falas, deixando transparecer preocupação com pausas e entonações ao projetar palavras como se formulasse pílulas de sabedoria. Se trabalhado habilmente, esse desencontro poderia servir como indício de que há coisas misteriosas ainda não mostradas ao espectador. De fato, a diferença tende a sinalizar uma distância entre os “lugares” que ele e ela ocupam nessa narrativa. No entanto, aqui a discrepância é um problema fundamentalmente de direção, pois contínua e para além do que descobriremos somente mais adiante. Claro, os intérpretes também têm a sua parcela de responsabilidade, mas, em tese, é o cineasta quem precisa zelar por essa coerência ou pelos efeitos de uma possível incoerência.

Ademais, Até a Noite Terminar tem problemas de execução reiterados. O primeiro deles diz respeito à fragilidade da comunicação entre os planos. Exemplo disso, o automóvel enquanto serpenteia pelas estradas estreitas rumo à serra. Quando visto de cima, ele ilumina o asfalto por meio da luz do faróis que recorta geometricamente a neblina. No take seguinte, feito de dentro do automóvel, o feixe simplesmente desaparece. Ele inexiste. E nessas ocasiões repetidas conseguimos perceber que as cenas foram captadas durante o dia e escurecidas em pós-produção para sugerir noturnas. Peguemos Ilha do Medo (2010), de Martin Scorsese, como parâmetro do que poderia funcionar por aqui, mas não funciona. O filme norte-americano contém pequenos contrastes entre planos subsequentes. A partir desse ruído, é traçada a estratégia de sugerir que há breves “falhas” naquela “realidade”. Além disso, Scorsese faz referência a algumas ficções científicas dos anos 1950 que cometiam involuntariamente esse tipo de descontinuidade de montagem por força da precariedade de suas condições de produção. Mas, no filme brasileiro, os ruídos não possuem essa natureza alusiva, tampouco dão conta de alertar os atentos quanto à necessidade de colocar em dúvida o que estamos vendo. O filme segue arranhando as notas do suspense e do horror enquanto desenha uma trama genérica e surrada.

Há alguns diálogos que beiram o constrangedor em Até a Noite Terminar. Um deles acontece enquanto Alice demonstra (com a mesma voz empostada, praticamente discursando) suas ressalvas diante dos comportamentos do marido. O famoso escritor, por sua vez, profere comentários que poderiam servir de alerta sobre seu jeito suspeito de agir e ser. A parada no posto de gasolina, a perseguição do automóvel desconhecido, o enguiço no meio do nada e a posterior chegada à casa da estranha estabelecem uma lógica que pertence ao cinema de horror. Parece que os protagonistas estão sendo atraídos para uma armadilha com requintes sobrenaturais. No entanto, Caco Souza se contenta em beber no cânone do gênero citado sem propriamente validar criativamente seus elementos ou subverte-los. Ele prefere colocar seus personagens em percursos de fácil identificação e, por meio disso, insinuar que há perigos nessa viagem de descanso. Mesmo depois do plot twist que explica o que está acontecendo de verdade, é difícil colocar na conta da projeção da mente em conflito os equívocos e as cenas mal encenadas. Voltando ao tom errático das interpretações: os personagens se aproximam ainda mais das caricaturas quando Alice e Tom se veem em situações sem explicação. Caras, bocas e exageros esvaziam o aspecto dramático e sequer sustentam o suspense em torno dessa realidade.

Livremente inspirado na peça teatral O Mastim, de Alexandre Pontara, o longa-metragem é uma sucessão de tentativas sabotadas por debilidades de concepção e execução. A loja de conveniência do posto de gasolina mais parece um bar (com direito a garçons de branco e preto); o próprio posto, num plano, tem ares de estabelecimento acanhado e, no outro, surge como um prédio imponente; o interior da casa da enigmática Senhora H. (Clarisse Abujamra) é uma mistura esquisita entre o aspecto clássico das mansões de beira de estrada (com predominância de móveis de madeira) e o moderno enfatizado pelos eletrodomésticos de aço escovado. São detalhes que denotam um desleixo da direção de arte com as lógicas internas desses mundos, sejam eles os imaginários e/ou os factuais. No meio de tudo isso, a verdade é servida aos poucos, com a ajuda de reviravoltas rocambolescas e revelações dignas de rasgados folhetins melodramáticos. A fotografia “lavada” – com cores de pouca intensidade e definição precária – prejudica a projeção das sensações e dos estados psicológicos dos personagens. No fim das contas, a trama fala sobre a brutalidade de um homem rumo ao sucesso, custe o que custar. A estratégia de “enlouquecer” um ente querido é tratada com grande displicência e as óbvias conexões entre paciente/terapeuta/marido são “entregues” antes de gerar suspense. O que prevalece são as debilidades, entre elas o elenco mal conduzido pelos caminhos reconhecíveis do cinema de gênero.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

Grade crítica

CríticoNota
Marcelo Müller
3
Alysson Oliveira
2
MÉDIA
2.5

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