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Sinopse

Várias pessoas estão fazendo uma longa viagem em um luxuoso trem. A paz, entretanto, é perturbada por um acontecimento sinistro: um terrível assassinato. À bordo, está ninguém menos que o mundialmente reconhecido detetive Hercule Poirot, que se voluntaria para iniciar uma varredura entre todos os viajantes, ouvindo testemunhas e possíveis suspeitos para descobrir o que de fato aconteceu.

Crítica

Agatha Christie é a rainha da literatura policial. Quanto a isso, não há o que questionar. Mesmo 40 anos após sua morte, seus livros – mais de cem, entre romances, peças e outros escritos até sob pseudônimo – venderam cerca de quatro bilhões de cópias em todo mundo. No meio audiovisual, já teve várias de suas obras adaptadas, seja para o cinema ou a televisão, em longas-metragens e até minisséries. Após um leve período de ostracismo nas telonas e com o revival de adaptações e remakes dos últimos anos, era de se esperar que logo Christie também retornasse às telonas. Assassinato no Expresso do Oriente é um de seus livros mais famosos e já virou filme, lá em 1974, pelas mãos de Sidney Lumet. Rendeu indicações e até ganhou um Oscar. Aposta mais que segura para a Fox dar seu pontapé inicial.

A direção e protagonismo em cena ficaram a cargo de Kenneth Branagh. No papel do mais famoso personagem da Dama do Crime, Hercule Poirot, o ator tinha uma difícil tarefa em mãos: adaptar com fidelidade o texto de Agatha, mas modernizá-lo, ainda que o longa se passe em 1934, assim como o material original. Porém, como transformar o requinte do cenário permeado por crimes, armas, paixões e aristocratas em algo palatável para um público cada vez mais acostumado com produções histriônicas, recheadas de CGI e texto raso? A boa notícia é que Branagh é gabaritado no assunto. Independentemente das críticas ou não, ele fez do primeiro Thor (2011) e, principalmente, Cinderela (2014), grandes sucessos de bilheteria. Ambos, com personagens famosos por trás. Assim como Frankenstein de Mary Shelley (1994) e Hamlet (1996). Seu Poirot não foge dessa sina de raízes shakespearianas. Porém, se os dois primeiros terços do filme são de uma linearidade exemplar, o terceiro ato quase derrapa feio e estraga a experiência. Ênfase no quase.

É durante uma viagem ao Egito, que envolve a solução de outro crime, que o detetive Hercule Poirot (Branagh), prestes a entrar em merecidas férias, embarca de última hora no Expresso do Oriente. Ele é convocado para solucionar outro caso. Só que nessa viagem, entre os vários passageiros, um pede sua ajuda. Edward Ratchett (Johnny Depp), vendedor de peças falas que, ao que se conta, tem vários inimigos devido a seus negócios. Ele quer contratar o detetive como segurança particular. Poirot recusa por não gostar do rosto do homem e, principalmente, porque não quer saber de solucionar crimes por um bom tempo. Durante a noite, uma geleira interrompe o trajeto do trem, que fica estagnado. Será preciso uma equipe externa para remover a neve e continuar o caminho. No outro dia, Ratchett é encontrado morto em seu vagão.  A conjunção de fatores, é claro, leva o belga a ter que correr contra o tempo atrás de pistas.

A decupagem é primorosa durante os primeiros 90 minutos de filme. Em um passeio da câmera ao longo do corredor dos quartos do expresso, vistos de fora, temos noção do ambiente em que o elenco está inserido. É um espaço quase claustrofóbico, em que é praticamente preciso empurrar um ao outro para poder passar. O que vai ajudar muito o próprio espectador a solucionar o mistério. Por falar nele, a cabine onde Ratchett é encontrado morto é vista de cima. O corpo estendido na cama, enquanto assistimos apenas às cabeças de Poirot e do chefe do trem, Bouc (Tom Bateman, ótimo) mexendo nos objetos e pistas deixados na cena do crime, é mais um exemplo da excelência do pensamento do diretor. Ao mesmo tempo que avança na trama, apresenta ao público os detalhes do crime quase como uma adaptação literal do clássico jogo de tabuleiro Clue (ou Detetive).

Outro aspecto que se destaca são as soluções encontradas por Branagh para apresentar os personagens, que fluem de forma absolutamente natural. Entre conversas rápidas de Poirot com os outros passageiros, já dá para ter uma ideia de que todos escondem algo que vai além do crime cometido. Afinal, o mote da história, muito além do mistério envolvido, é a análise de Agatha Christie sobre o ser humano e como ele é capaz de mentir ou soltar meias verdades para não se envolver – ou que não o envolva. Cada um dos nomes em cenas tem bons motivos para tal, ainda que alguns ganhem mais destaque que outros.

É nesse quesito que Michelle Pfeiffer mostra que está num dos melhores anos de sua carreira. Após várias participações de leve em filmes não tão interessantes, a experiente atriz ganhou de presente um belo papel no controverso Mãe! (2017) – talvez uma das poucas unanimidades positivas do longa de Darren Aronofsky – e, agora, a falante Caroline Hubbard. Porém, se tanto no livro quanto na versão de Sidney Lumet, com Lauren Bacall na sua pele, a personagem era um tanto quanto sem grande profundidade, na pele Pfeiffer ela só cresce ao longo da projeção. Ainda que em participações levemente menores, Josh Gad, Daisy Ridley, Willem Dafoe e Penelope Cruz também têm grandes momentos. Porém, um dos mais interessantes é Leslie Odom Jr. na pele do médico Arbuthnot. O acréscimo de um negro no elenco encontra espaço não apenas pela diversidade, mas também por conta da discussão do racismo e da xenofobia que Branagh tenta, ainda que de leve, imprimir no longa. Talvez até numa clara crítica a Trump.

Porém, o mestre aqui é Branagh, talvez na melhor incorporação de Poirot até agora, batendo mesmo Albert Finney (indicado ao Oscar pelo papel em 1974) e Peter Ustinov, que fez o detetive nada menos que seis vezes. Além de trazer toda a excentricidade física (o bigode), os tiques e a arrogância de Poirot (“sou o melhor detetive do mundo”), o ator/diretor consegue carregar um peso dramático não visto na obra original. Aqui, o investigador belga está cansado, sem mais paciência para crimes, com dores emocionais de um amor perdido. Ele está, em suma, fragilizado, o que torna o personagem mais sensível e até errático em suas suposições. É o sinal dos novos tempos que desconstroem os antigos heróis do cinema e da literatura. Se James Bond hoje pode levar tiros e quase morrer, por que Poirot não pode errar num caso?

O grande elo fraco desta adaptação de Assassinato no Expresso do Oriente é justamente onde se deveria ter mais cuidado: o clímax e a revelação do responsável pelo crime investigado. Tanto o clichê da cena que remete diretamente à Última Ceia quanto a trilha sonora, que até não fazia diferença no longa, mas agora se torna incomodativa e quase apaga a audição das falas proferidas, são mal construídos e apressados, o que deixa um sabor amargo para quem está se divertindo num ritmo tão bem executado até então. Não que a experiência no saldo geral se torne desagradável, mas isso acaba lhe tirando um pouco de seu brilho. O resultado nas bilheterias mundo afora tem sido interessante e Agatha Christie é sempre um prazer de ler ou assistir. Não à toa já temos uma continuação confirmada “Sobre o Nilo”. Será que teremos mais um universo compartilhado como tantos que vemos por aí no cinema? É torcer para que sim. Que as falhas dessa primeira empreitada sejam corrigidas, mas, especialmente, que Branagh retorne. Seu Poirot, assim como o personagem, está próximo de se tornar inesquecível.

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é crítico de cinema, apresentador do Espaço Público Cinema exibido nas TVAL-RS e TVE e membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Jornalista e especialista em Cinema Expandido pela PUCRS.
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