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Sinopse
As Praias de Agnès: Com fotografias, fragmentos de filmes, entrevistas, e pequenas encenações, Varda compõe uma autobiografia, num passeio do tempo de criança na Bélgica até a França, da descoberta do cinema até a participação na Nouvelle Vague, do casamento e dos filhos até a vida depois da morte de Jacques Demy. Documentário.
Crítica
Nas viagens, montagens e fantasias que começam na Bélgica e vão até os vilarejos litorâneos franceses, Agnès Varda encontra vestígios de uma vida. Descobertas entre seus próprios filmes (suas imagens), pululam expressivos os planos e as personagens. As Praias de Agnès reforça na memória de Varda (que é também um pedaço da memória do cinema) um mundo que não pode se apagar – a câmera e a película são parceiras nessa luta pelo registro da memória que desafia nossa falibilidade. Está aí a poesia: filmar o mundo não é simplesmente uma maneira preguiçosa de proteger o espírito, mas significa impedir que ele desbote. A câmera é uma forma de acesso intermediada pelas palavras – ou pela possibilidade delas. Aqui: as palavras e as coisas, o imaginário e o real, a política e revolução das ideias.
As palavras e a memória do mundo (a câmera, o filme/película, os espelhos) são antes matéria de resistência da vida e da arte do que substância da poesia. Em Varda, esta é muito mais o resultado de uma imersão escatológica na agonia da espécie e no descobrimento das manifestações humanas que, em sua obra, bem representam a arte e a política – e a sua política, sua polis, não é nada apegada a psicologismos e significâncias; ao contrário, é das práticas dos movimentos e das articulações populares que se faz poética e potente. Sem desvios de perspectivas, mas com a verve de uma obra inteira deslocada das sensibilizações cartunescas ficcionais (a ficção é ela mesma entendida em suas limitações), As Praias de Agnès estabelece sua força no limiar entre o registro (memória) e a história de um povo, de um filme, de um mundo, mas sobretudo de uma cineasta. Não raro, em sua obra temos uma série de filmes extremamente falados, onde a palavra não é mero jogo de discursos e sim olhares sobre homens e mulheres narrando desejos e aspirações, sejam aqueles da juventude e das lutas sociais por igualdade (Panteras Negras, 1968) ou os dos amores utópicos que, afinal, constituem as sociedades (Cléo de 5 à 7, 1962).
Antes de aproximá-la a Nouvelle Vague (uma aproximação, aliás, sempre delicada, já que Varda nunca reivindicou seu pertencimento ao grupo de Godard, Truffaut, Chabrol, Rohmer, Rivette, Demy e Resnais, e que sempre foi mais uma forma de união realizadora de filmes que de um movimento engajado esteticamente), vale notar a cinefilia discreta da cineasta. Segunda ela, “até aos 25 anos, só tinha visto uns 9 ou 10 filmes”. Nem precisava ter visto mais que isso, já que sua obra está estritamente ligada muito antes às vicissitudes da vida que à pretensão mandante em construir um projeto de cinema. Seus filmes sempre reivindicaram a imagem, as palavras, e aí a poesia – e o fizeram mais explicitamente os documentários. Como, para a cineasta, fazer filmes sempre foi um método de acesso as experiências humanas e suas relações mais íntimas (políticas), tornou-se muito claro aos espectadores mais apressados que sua narrativa sempre consistiu em algo como simplesmente abraçar o real – um filme nunca é só uma coisa. A câmera de Varda é, todavia, mais cativante e surpreendente que a leitura fácil impregnada nos olhares treinados pela ficção (algo a que o documentarista canadense Pierre Perrault fazia oposição, e que deixava claro, como demonstra sua filmografia e seus escritos*). As Praias de Agnès não é só a vida em uma obra, tampouco a obra de uma vida: é substrato da existência corporificada em retratos/pinturas, imagens e montagens de cenários que flertam com o surrealismo (“heresia”) e que beijam e mordem a arte para vê-la sangrar. Eis, pois, sua beleza.
Um filme é a salvaguarda da memória. Explorá-la é, antes de tudo, abrir a câmera para o registro das fabulações, dos movimentos, da História ou dos sonhos (Varda, cineasta naturalista que é, nunca deixou o onírico se perder em nome da tal verdade ou de um realismo nefasto; ainda assim, interpretação dos sonhos não é creditada ao sobrenatural). Quaisquer que ainda sejam suas aspirações como realizadora, ela ainda respira saudável e vibrante. Um filme não exatamente sobre uma obra, mas sobre uma pessoa.
*Ver Pierre Perrault: o Real e a Palavra (livro/catálogo editado para a recente mostra do cineasta que passou pelo Brasil, organizada pela Balafon).
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