As Mortes de Dick Johnson

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Sinopse

A diretora tenta encontrar uma forma de manter seu pai de 86 anos vivo para sempre. Ela encontra uma saída ao misturar o cinema e o humor cáustico que é peculiar a sua família.

Crítica

Existe maneira menos dolorosa de lidar com a morte de um ente querido? Talvez não pensando estritamente nisso, mas fazendo o possível com sua vocação de cineasta, Kirsten Johnson resolveu ter o cinema como suporte ao luto futuro. Seu pai, Dick Johnson, respeitado psiquiatra da cidade de Seatle, foi diagnosticado com demência e está prestes a perder, além da memória, grande parte da autonomia. Mas, no começo, habilmente, a realizadora esconde do espectador essa informação, desviando sua atenção ao dispositivo insólito de encenar várias mortes possíveis para seu pai. Valendo-se da ficção, ela busca aliviar o fardo da realidade, partindo da premissa de que os fins imaginados precisam ser acidentais, ou seja, repentinos e, portanto, opostos ao lento e  doloroso processo de despedida que adiante somos convidados a testemunhar. Nos primeiros 30 minutos de As Mortes de Dick Johnson, sobressai a comédia, por meio da qual o protagonista aceita entender a própria finitude, isso enquanto a filha, uma presença constante no extracampo, também começa a conceber como será essa enorme perda que se aproxima. Gradativamente, com mais dados revelados, o drama acaba se impondo.

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As Mortes de Dick Johnson convoca às lágrimas em vários momentos. Aos poucos, Kirsten Johnson transforma as encenações num indício da necessidade de (r)enfrentar uma dor conhecida. Isso, pois a sua já falecida mãe teve o fatídico Mal de Alzheimer, lentamente esvanecendo diante dos olhos da família. Dick recorda da esposa com um misto de saudade e aceitação quanto ao andamento natural da vida, inclusive apresentando episódios cortantes de lucidez em que demonstra saber das semelhanças de sua condição atual. A história se repete e o sujeito não é dela mais um espectador. Entre as cenas emocionantes do filme, destaca-se a da relutância doída de Dick diante da informação de que precisará se desfazer de seu amado carro. Com a gentileza que lhe é peculiar, candura tão carinhosamente sublinhada pela filha, ele deixa as lágrimas transbordarem, mas faz questão de mostrar-se ciente de que não há nada a fazer. Perguntado se aquela comoção era por conta da perda da independência, ele não segura a barra e deixa o choro vir ainda mais intenso. É um pequeno átimo que condensa toda a dramaticidade dessa situação enfrentada pelos envolvidos.

O cinema não é apenas um mecanismo maravilhoso por meio do qual Kirsten Johnson elabora seu compassado processo de luto. Ele também é meio de aproximação, uma desculpa séria e artisticamente relevante para pai e filha revisitarem ocorrências do passado, para ambos terem uma dinâmica criativa conjunta. As Mortes de Dick Johnson ressalta acontecimentos relevantes, tais como a mudança de Dick para Nova Iorque, a fim de ficar próximo de Kirsten nos incertos anos que ainda lhe restam. E a cineasta costura com enorme ternura e inteligência os posteriores flagrantes de uma vida doméstica alterada pela senilidade paterna e as cenas criadas para oferecer a ele a possibilidade de conjecturar como poderia ter morrido de modo imprevisto. A força da representação é um tema subjacente nesse documentário íntimo, haja vista, por exemplo, o impacto do espetáculo montado em torno do fingimento de um velório. A resposta do melhor amigo do protagonista, ciente da farsa, ajuda a compreender como essa realidade fabricada à câmera pode ter potência. Aliás, em várias passagens o filme brinca com as fronteiras difusas entre a realidade e a ficção.

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O saldo de As Mortes de Dick Johnson é bem mais dramático do que cômico, vide a forma como Kirsten Johnson vai deixando a dureza das situações factuais tomarem a dianteira. Ela permite ao longa-metragem ser guiado exatamente pelo desdobramento crescente de seus jeitos de encarar aquilo tudo. No princípio, ainda que tenha noção sobre o estado do pai, ela brinca com essa capacidade extraordinária do cinema de aliviar determinadas dores implacáveis. A complicação no quadro de saúde do homem condiciona o modo como o cinema é utilizado adiante. A natureza lúdica da Sétima Arte é colocada a serviço de dinâmicas que permitem imaginar uma festa no paraíso com personalidades admiradas por Dick, o reencontro com a esposa desencarnada (a dança dos mascarados é um momento lindíssimo) e até Jesus Cristo operando o milagre capaz de acabar com uma das vergonhas do protagonista. Kirsten incorpora a lógica religiosa, sob a qual foi criada, igualmente com esse intuito de aguentar o inevitável. Nesse percurso bonito, ela faz uma homenagem e tanto ao pai, ressaltando o brilho de sua personalidade cativante, nos convidando a sentir com ela essa perda.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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