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Sinopse

Uma detetive particular se infiltra num hospital psiquiátrico a fim de investigar a morte de um dos pacientes.

Crítica

As alternativas criativas/expressivas do cinema aumentaram significativamente à medida que o espectador se acostumou com a linguagem da Sétima Arte. Nos primórdios das projeções, o público não compreendia certas lógicas narrativas que a nós parecem muito simples, tais como as ações paralelas e a alternância entre as camadas da trama que possuem jurisdições distintas (verdade, sonho, imaginação, lembrança etc.). Basta assistir a alguns filmes antigos para perceber laterais borradas e/ou diferentes tonalidades nas cenas de sonho e até nas de flashback. Era necessária a separação visual para deixar evidentes as fronteiras e assim manter o espectador situado/confortável. Com o passar do tempo e o acúmulo de experiência da plateia, os criadores começaram a embaralhar verdades e mentiras, apostando exatamente nas potencialidades dramáticas de um jogo de esconde-esconde que antes não prosperaria por ser motivo de confusão/frustração. As Linhas Tortas de Deus segue essa toada de filmes modernos que mantêm as interrogações. Neste caso, resolver as conspirações se torna tarefa complicada em virtude das tantas pistas falsas pelo caminho. A protagonista é Alice (Bárbara Lennie), supostamente uma detetive particular internada por conta própria num manicômio, no fim dos anos 1970, que investiga o possível assassinato de um interno, reportado à polícia como suicídio.

A leitura dessa personagem está no condicional, pois o roteiro assinado por Guillem Clua, Oriol Paulo e Lara Sendim gradativamente coloca em xeque o que pouco antes tratava como absoluta certeza. Sempre funciona assim, o que acaba criando um esquema previsível. Ficamos grudados na protagonista que recebe a ajuda de internos e funcionários para conhecer o manicômio – o velho expediente do novato como representante do espectador desinformado. E ela é tragada rapidamente a um redemoinho de desconfianças e incertezas. O cineasta Oriol Paulo deseja nos prender num labirinto ao fechar determinadas saídas que pareciam evidentes enquanto abre caminhos que não passam de alternativas duvidosas. Há um climão de novela mexicana na entonação e na forma como os membros do elenco interagem, algo decorrente de uma encenação que privilegia os excessos e as saturações de tom. Essa filiação ao folhetim está também no modo como a história é contada, na construção dos episódios que, somados, podem oferecer um painel relativamente intrigante. No entanto, de determinado momento em diante, As Linhas Tortas de Deus escancara uma guerra simplória entre as versões conflitantes. Oriol não é o tipo de realizador que fermenta sutilezas nas entrelinhas, mas alguém que sublinha a distância entre o que uns e outros dizem. Em certos instantes, o filme parece demasiadamente orgulhoso da confusão criada para fisgar o espectador mais suscetível. É aí que mora o perigo.

A imagem é uma forma muito poderosa de expressão. No cinema, nos acostumamos a acreditar em tudo o que vemos. Aí, lá nos idos de 1950, o cineasta japonês Akira Kurosawa lançou um filme paradigmático que mudaria isso. Rashomon é sobre a relatividade da verdade, tanto que utiliza flashbacks diferentes da mesma história. Na melhor das hipóteses, entre as três versões oferecidas a respeito de um crime hediondo, duas são inverídicas. Portanto, dois (ou os três) flashbacks falsos foram utilizados para colocar em xeque a certeza atribuída às imagens. Uma vez que o flashback geralmente é fruto de uma narrativa individual (de uma história contada por alguém), porque ele teria de corresponder necessariamente à realidade objetiva? Em As Linhas Tortas de Deus, Oriol Paulo rapidamente deixa claro que não há em quem confiar cegamente, pois coloca em polos opostos do combate retórico flashbacks que relatam versões completamente diferentes sobre a mesmíssima situação. Alice insiste que é uma detetive, enquanto o diretor do sanatório a desmente e sugere que a trama é fruto da paranoia. Mais adiante, surge uma terceira possibilidade, a conspiratória. E esta também pode resultar da condição médica da protagonista. Porém, falta um ajuste fino, além de nuances, para que esse interessante conflito ganhe substância. O que temos é uma disputa burocrática de variantes.

Num filme semelhante como Ilha do Medo (2010), somos conduzidos pelas “certezas” de alguém a fim de não percebermos a distração da verdade concreta. Há toda uma engenharia cinematográfica para dar indícios de uma coisa, quando estamos indo em outra direção sem nos dar conta. Até porque o mistério falso é instigante. Além disso, o cineasta Martin Scorsese estimula um trânsito entre inconsciente e consciente. Em As Linhas Tortas, o realizador espanhol Oriol Paulo é bem menos eloquente como um artesão de suspense. Ele simplesmente apresenta uma opção que parece plausível, logo depois cria rachaduras nela (o que muda o estatuto/local da verdade) e arremata acrescentando um par de elementos para manter a sensação de dúvida. Quando tudo parece plausível, nada mais parece realmente plausível. E esse resultado seria melhor sem o apego excessivo à noção de uma única verdade. Se o filme fosse, por exemplo, sobre algo mais escorregadio ainda, tipo a própria noção de sanidade, ele ganharia em amplitude. O saldo é um suspense com bons momentos, escolhas engenhosas (sendo a principal delas o flashfoward camuflado de flashback), mas que se afoga na poça rasa de suas ambições cinematográficas. O ambiente do sanatório é asséptico demais, o que não instiga a tensão da permanência), apenas alguns coadjuvantes são interessantes e, sobretudo, a trama não vai além de ser um simplório choque entre versões. E, nesse choque, a psique de Alice é mera figurante.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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