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Sinopse

Criança presa num corpo de homem, Pee-Wee embarca numa aventura sem precedentes quando precisa localizar a sua bicicleta. Pee-Wee vai percorrer a imensidão dos Estados Unidos em busca de um de seus bens preciosos.

Crítica

Após trabalhar durante anos como animador dos Estúdios Disney, Tim Burton revelou-se um profissional não adequado – ao menos não nesses primeiros momentos de sua carreira – para o formato tão calculado e tradicional de uma empresa que, curiosamente, havia surgido a partir dos sonhos um homem conhecido por confrontar padrões pré-estabelecidos. Os trabalhos que o cineasta fizera até então – os curtas Vincent (1982) e Frankenweenie (1984) e o telefilme João e Maria (1982) – eram sombrios e assustadores demais para se encaixarem em um universo tão colorido e simples. Foi por isso que, quando a Warner lhe ofereceu a oportunidade de estrear no cinema com um longa-metragem baseado em um popular personagem de televisão, a proposta lhe soou praticamente irrecusável. E o resultado é As Grandes Aventuras de Pee-wee, um filme que, se por um lado pode soar diferente de tudo que o diretor produziu nos anos seguintes, por outro oferece as sementes de muitos dos elementos que viriam a se tornar características marcantes do estilo do autor na tela grande.

Pee-wee Herman surgiu pela primeira vez cinco anos antes, primeiro nos palcos e depois no longa Cheech e Chong Atacam Novamente (1980), comédia satírica e debochada que, entre outras coisas, promovia uma nada discreta ode à maconha. Em seguida ele estava na telinha, no programa The Pee-wee Herman Show – ainda em um formato voltado ao público adulto, repleto de piadas de conotação sexual e de duplo sentido. Ainda que não tenha sido o foco inicial, elas começaram a chamar atenção de uma audiência mais jovem, e após outros especiais televisivos e participações esporádicas, havia chegado o momento de testar essa figura para, enfim, definir seu tipo de espectador. Esta necessária experiência se chamava As Grandes Aventuras de Pee-wee, e foi diante dessa situação prévia que o nome de Tim Burton surgiu. Ele, ao contrário deles, pensava falar com crianças fazendo uso de temas bastante sérios e preocupantes. Seria possível percorrer o caminho inverso? Pois Burton não só assumiu o desafio, como saiu-se bem. Isso significa que temos, então, um bom filme? Curiosamente, não. As Grandes Aventuras de Pee-wee beira o insuportável, com momentos que abusam do clichê mais óbvio, além de contar com um protagonista irritante, infantilóide, assexuado e levemente retardado. Mas esta avaliação só é possível hoje, quase três décadas após o seu lançamento. Na época, no entanto, foi recebido como revolucionário, capaz de provocar uma necessária mudança de conceitos em relação à natureza daquele que, aparentemente ingênuo, era capaz de provocar reações diversas naqueles com quem acaba travado qualquer tipo de contato.

Pee-wee Herman, que até então era somente um tipo, passa a ser uma figura concreta, com presença, história e relevância. Conhecemos sua casa, paixões, interesses e inimigos. E, assim, foi possível uma identificação, ainda que tortuosa. Os primeiros minutos do filme são ocupados em uma longa sequência em que acompanhamos o começo de um dia normal na vida de Pee-wee. A feitura de seu café da manhã, através de engenhocas e processos calculados, encontra ressonância em obras como Peixe Grande (2003) e, principalmente, na versão burtoniana de A Fantástica Fábrica de Chocolate (2005), em que uma engenharia aparentemente complicada está a serviço de algo pueril e tão simplório quanto a feitura de uma bala – ou de uma torrada, no caso. Sozinho, é uma criança perdida no mundo, cujo único interesse é o ciclismo que pratica diariamente, atividade viva em sonhos e também na inveja dos conhecidos. E seria este somente mais uma dia igual a tantos outros, caso algo inesperado não acontecesse: o sumiço de sua melhor amiga, a bicicleta! A partir deste ponto, As Grandes Aventuras de Pee-wee se refere à jornada dele em busca do objeto perdido e de quem a teria levado.

Não há, no entanto, segredo em relação a esse mistério. Se a desconfiança surge de imediato, ela é explicitada em seguida. Este artifício é somente uma desculpa, e não o fio condutor do filme. Sua função é colocá-lo na estrada, formatando a trama dentro dos limites de um road movie. Assim, começam a se suceder diversos episódios – como esquetes televisivos – em que o protagonista terá que lidar com os mais diversos tipos de públicos. Eficiente em descobrir seu foco de atenção e, principalmente, o impacto que provoca em cada um dos atingidos. Não há dúvidas se Pee-wee encontra ou não sua bicicleta. Esta não é a questão. No entanto, é interessante observar seu caminho desde um cenário completamente seguro – a casa, os amigos, aqueles que o conhecem e o aceitam como é – até o confronto com quem não só o estranha como repele, ainda que inicialmente, para, com o processo, descobri-lo com outros olhos e acolhê-lo afetivamente. Esta, sim, é a função do filme e o que precisava ser feito. E isso Tim Burton consegue. As Grandes Aventuras de Pee-wee não só gerou o programa Pee-wee’s Playhouse (1986), que ficou cinco anos no ar, como teve uma continuação – Big Top Pee-wee (1988), que foi dirigido por Randal Kleiser, o mesmo de Grease: Nos Tempos da Brilhantina (1978) e A Lagoa Azul (1980) – e definiu os parâmetros do personagem para os anos seguintes. Suficiente? Para alguns, sim, mas não para todos. 

Em 1991, Paul Reubens – o intérprete de Pee-wee, agora estabelecido como um ícone infantil – foi preso ao ser pego se masturbando em público em uma sala de cinema adulto. Isso não só acabou com sua maior criação como deu origem a uma nova releitura de tudo o que havia sido feito até então. Tarefa, é claro, que nem alguém talentoso como Tim Burton poderia desfazer. Mas isso, obviamente, não deve afetar as leituras que As Grandes Aventuras de Pee-wee ainda hoje proporciona. Ainda que seja um filme próprio de um contexto muito específico, cumpriu com efeito aquilo ao qual era destinado. Não que funcione isoladamente, mas inserido em um quadro maior, foi um primeiro passo necessário e bem-sucedido para um caminho que tanto impacto provocaria nos anos seguintes.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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