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Sinopse

Arthur Rambo é um pseudônimo de alguém que espalha mensagens de ódio nas redes sociais. Mas, quem ele seria na verdade? Talvez um jovem e inconsequente escritor frustrado, empenhado em fazer sucesso? Quando a verdade vem à tona, a vida e a carreira de um jovem escritor descendente de imigrantes é colocada duramente em xeque. 

Crítica

A palavra “cancelamento” está muito em voga nos últimos tempos. Ela designa uma cultura amplamente disseminada na internet – sobretudo nas redes sociais. Consiste em isolar alguém que fez comentários e/ou tomou atitudes consideradas irresponsáveis, preconceituosas e/ou criminosas. É uma forma de justiçamento virtual que tem defensores e detratores em semelhante medida e com equivalente paixão. E como nas redes tudo tende à simplificação, muitos acreditam que relativizar/questionar os cancelamentos seria automaticamente um atestado de conivência, o famoso “passar pano”, quando na verdade existem mais nuances nessa prática do que admite imediatamente a nossa binária filosofia contemporânea online. Em @Arthur Rambo: Ódio nas Redes o protagonista é Karim D. (Rabah Nait Oufella), jovem escritor que experimenta as delícias da fama após lançar um livro no qual conta as experiências da mãe como imigrante argelina na França. Badalado em programas literários de natureza burguesa/elitista, comentado positivamente em círculos eruditos, tratado como raridade por editoras, produtoras, amigos e toda sorte de gente que orbita celebridades, ele vai do céu ao inferno em questão de minutos. Aos olhos da opinião pública, se torna um Bezerro de Ouro, o cordeiro a ser sacrificado publicamente para fazer a sociedade “dormir tranquila” por ser diligente e moralmente casta.

O cineasta Laurent Cantet (o mesmo do excelente e premiado Entre os Muros da Escola, 2008) sublinha lógicas e comportamentos atuais a partir desse personagem que está numa descida vertiginosa ao inferno. Karim manteve durante anos um perfil falso no Twitter no qual destilava ódio aos borbotões, chorumes racistas, homofóbicos, machistas, gordofóbicos e extremistas. Quando esse outro lado de sua criação vem à tona, a sensibilidade de escritor não mais importa, pois o mesmo mundo que o celebrou acaba determinando a sua ruína. @Arthur Rambo: Ódio nas Redes estabelece essa premissa com atenção especial à reação do protagonista à mudança radical de sua imagem pública. Rabah Nait Oufella expressa muito bem o turbilhão de questionamentos que atravessam seu personagem, bem como as tentativas de defender a construção fictícia que buscava ponderar sobre os limites e as atrocidades. Isso tudo enquanto amigos, amantes, familiares, colegas de trabalho e demais ao seu redor vão o abandonando. Embora nem sempre elabore de modo consistente a complexidade por trás de algo que tende mesmo a ser simplificado pela polarização das redes sociais, o realizador oferece ao menos um terreno para a reflexão e sem pontos que inviabilizem esta ou aquela leitura. O longa não está em busca de apontar certos e errados, mas de expor as engrenagens da controvérsia.

Por onde passa, Karim sente a hostilidade dos que tentam se distanciar dele como se com isso evitassem uma contaminação virtual. Os amigos (que conheciam o perfil falso) sequer pensam duas vezes antes de trata-lo como um vírus contagioso. Os parceiros num canal de YouTube focado na informação sobre a periferia de Paris demonstram raiva por ele ter colocado um trabalho de anos na lata do lixo. Editores e empresários se afastam, pois estão mais preocupados com as próprias reputações. Pena que Laurent Cantet não dê mais atenção às diferenças fundamentais dessas reações de acordo com os níveis de proximidade e interesse pelo protagonista, o que certamente faria o filme ganhar espessura dramática e ampliar o seu diagnóstico social/afetivo. No entanto, a trama é suficientemente boa para garantir que os discursos sugiram questionamentos implícitos. Será que Karim está sendo "destruído" por ter manifestado abominações sob um pseudônimo ridículo ou em virtude de ser um filho de imigrantes em plena ascensão numa França refratária aos herdeiros do colonialismo? Karim realmente acredita na validade da provocação ou apenas continuou com ela para ganhar mais seguidores, assim atendendo a esta lógica nefasta das redes sociais de presentear os extremistas com visibilidade? O quão profundo é esse isolamento imposto ao jovem e talentoso escritor?

Em @Arthur Rambo: Ódio nas Redes, a linguagem seca/direta flerta com o thriller. A partir desse esqueleto clássico, os motivos/sentimentos/dúvidas são verbalizados quase didaticamente. Diante dos endinheirados, o protagonista recebe ora atenção, ora ignorância; sua família o acolhe criticamente na crise, mas a conversa final com o irmão é inserida à fórceps (embora seja cabível) para reforçar a irresponsabilidade do protagonista; os amigos que antes riam de Arthur Rambo, agora lavam as mãos. O cineasta opta por manter-se estritamente ao lado de Karim, nem por isso endossando desculpas e/ou motivos e tampouco o criminalizando como monstro. Talvez partindo da premissa de que a plateia tem experiências prévias com a cultura do cancelamento, Laurent Cantet não se aprofunda nos demais atores do show de horrores, focando-se num alvo constantemente golpeado pelas ramificações de algo que começa na responsabilidade social e na tentativa de melhorar a sociedade, mas que às vezes descamba ao linchamento. Porém, o mais incômodo no filme é a falta do olhar a quem demonstra raiva de Karim na internet. As principais mensagens que denunciam a suposta “hipocrisia esquerdista” teriam de vir de uma direita escandalizada com racismo, homofobia, machismo, gordofobia e extremismos. E Arthur Rambo, a gente sabe bem, receberia aplausos por toda a barbárie, ou seja, essa indignação praticamente total é um aceno quase inocente à realidade que o filme tenta ler com empenho.

Filme visto no 12º Festival Varilux de Cinema Francês, em novembro de 2021.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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