Crítica


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Sinopse

Dois forasteiros aparecem repentinamente e mudam a vida de quatro mulheres e de uma menina. Um deles é fugitivo, quase um fantasma se esgueirando pela localidade. O outro carrega uma arma.

Crítica

Curiosamente, este belo filme sobre a invisibilidade se abre com a imagem de um olho – não apenas uma imagem comum, mas uma aproximação médica, microscópica, na retina, na íris, nas veias. A câmera busca neste olho anônimo, e desconectado do resto da trama, uma porta de entrada para filmes sobre olhares (ir)reais e olhares possíveis. Não por acaso, as protagonistas são determinadas pelo jogo de observação: Nadia (Iria Parada) posa como modelo viva para um grupo de estudantes de artes plásticas, enquanto a aluna Elena (Rosa Puga Davila) a observa a desenha seu corpo. Julia (Melania Cruz), a professora, vigia ambas. A filha pequena de Elena admira o comportamento dos adultos sem compreendê-los, funcionando com um olhar puro e inocente, enquanto a avó da garota foge do hospital apenas para ver a filha.

No entanto, um elemento é citado por sua ausência: os homens marcantes na vida destas personagens. Uma delas perdeu o irmão, desaparecido há décadas, enquanto outra oferece o corpo a visitantes mascarados de encontros eróticos. A garotinha jura que enxerga um espírito masculino gentil, que lhe passa mensagens. Nesta cidade das mulheres, as protagonistas são autônomas e determinadas, enquanto os homens são retirados da equação. Um único ator estabelece a ponte entre todas elas, ainda que sem estabelecer um relacionamento real com nenhuma personagem: David (Tito Asorey), figura bruta, de arma em punho, prestes a disparar contra qualquer ameaça. Neste contexto simbólico, as mulheres representam a gestão e a liderança, enquanto os homens funcionam como perigo.

A diretora Jaione Camborda não facilita a tarefa do espectador em termos de linearidade e construção de personagens. Cada mulher existe enquanto núcleo isolado, destituído de conflitos, até que a trama efetue minúsculas associações entre elas. Durante a maior parte do tempo, efetuam tarefas cotidianas, trabalham, cuidam dos familiares. Elas existem apesar do filme, como se fossem espiadas, e não construídas dentro de uma trajetória narrativa visando um fim específico. Arima possui uma curiosa costura em torno de esquetes independentes, de grande liberdade formal e discursiva. A cineasta oferece um público um passeio junto dessas personagens, passando algumas horas com cada uma, de maneira despretensiosa, casual – algo particularmente interessante dentro de uma trama sobre fantasmas, armas e homens invisíveis.

Talvez o principal fator de estranhamento provenha da estética adotada: mesmo dentro de uma captação de aparência digital, Camborda consegue atribuir uma aparência de cinema antigo, com fotografia bastante contrastada e saturada, impregnando a textura de um tom sujo, gasto, como uma curiosa película destituída de granulação. Por estas escolhas, o resultado remete a outras produções espanholas clássicas que relacionam a infância à descoberta da morte, como Cría Cuervos (1976), de Carlos Saura, e O Espírito da Colmeia (1973), de Víctor Erice. A combinação entre autonomia feminina e textura de décadas atrás produz notável efeito de atemporalidade, como se esta trama pudesse ser situada em épocas e locais distintos. Pelo aspecto evidentemente fabular, tende a transformar suas personagens em arquétipos.

Ao mesmo tempo, os recursos empregados remetem a narrativas clássicas de parábolas, contos e lendas. A ideia do retorno do filho pródigo se associa à noção de um amigo imaginário, assim como à chegada do “estranho que nós amamos”, sedutor e perigoso. Arima está repleto de sugestões e acenos, dispostos de maneira livre, como numa conversa em que o interlocutor se lembra de uma segunda história à medida que evoca a primeira, e depois uma terceira a partir da segunda, e assim por diante. Embora não possa ser considerado experimental no sentido estrito do termo, brinca com a pressuposição de finalidade e de linearidade das narrativas tradicionais. Resta uma voz claramente autoral, corajosa ao apostar em estrutura tão etérea, e transformando a força feminina em um pressuposto natural, evidente, e longe do militantismo panfletário.

Filme visto na 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2019.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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