Crítica
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Crítica
Maria Augusta Ramos é uma das principais documentaristas em atividade no Brasil. Um viés curioso do que seu trabalho, que logo se torna evidente para quem a acompanha há algum tempo, é a sua posição enquanto observadora e o quanto espera que aquele a quem se dirige consiga se colocar no lugar dela, permitindo que esse chegue às suas próprias conclusões a partir das imagens compartilhadas. Sem nunca se assumir num primeiro plano, incita à audiência essa posição, pois tanto se aproxima do que lhe interessa, como também se esforça em um afastamento necessário para que não influencie qualquer conclusão pré-moldada. Essa percepção recorrente mais uma vez se verifica em Amigo Secreto, o décimo primeiro longa que assina como realizadora. E assim como o díptico Justiça (2004) e Juízo (2007) abordavam diferentes lados de uma mesma moeda, ambos gerando fortes efeitos e impressionantes repercussões, aqui ela mais uma vez segue dando desdobramento a um dos seus trabalhos anteriores. Porém, se O Processo (2018) mergulhava nos absurdos cometidos pela classe política nacional que levaram ao impeachment da presidente Dilma Rousseff, aqui se propõe a acompanhar os movimentos jurídicos que resultaram na prisão do ex-presidente Lula e o seu afastamento das eleições presidenciais de 2018. E mesmo sem dizer uma só palavra, seja por narração ou mesmo colocando-se em cena, expõe tanto que serão raros os que conseguirão se manter impassíveis ao poder dessa forte denúncia.
Em Filadélfia (1993), cada vez que o protagonista interpretado por Tom Hanks precisava relatar algo a respeito do seu modo de vida ao advogado vivido por Denzel Washington, esse, ciente de estar tratando com alguém que via o mundo de um ponto de vista muito distante do seu, o orientava: “por favor, fale comigo como se eu fosse uma criança de cinco anos”. Então, é mais ou menos essa a conduta assumida pela diretora. Desde o começo, o viés escolhido é bastante didático, justamente para torná-lo amplo, visto a urgência do que aborda. Há, portanto, duas consequências a partir dessa escolha. A primeira, e mais provável, é que acabará se dirigindo aos já convertidos, ou seja, alinhados ao seu modo de pensar, e por isso mesmo familiarizados com muito do que por aqui encontrarão. Pois, para esses, o conjunto se mostra preciso ao oferecer detalhes e elucidações até de pontuações mais obscuras, enriquecendo o debate e fornecendo argumentos relativos a questões até sabidas, porém não antes por demais aprofundadas. A segunda, que seria a mais desejada, visa estabelecer um diálogo com os contrários, os que refutam não versões, mas os fatos – e esses, como bem se sabe, apenas são como se sucederam, sem pender a um lado ou outro. Esclarecendo áreas nebulosas, talvez consiga promover, se não a mudança, ao menos um questionamento. Um passo aparentemente simples, mas que pode levar a um resultado transformador.
A narrativa começa em 2017, ano em que a operação Lava Jato estava em alta no país. O juiz Sérgio Moro interrogava Luís Inácio Lula da Silva, e esse, por mais respostas diretas e objetivas que oferecesse, nunca parecia satisfazer seu interlocutor. A ausência de troca e de entendimento – ou de vontade de, o que qualquer um atento será levado a concluir – já estava posta. Mas quais os motivos para tal postura? A realizadora até exerce seu papel de detetive, mas não como num clássico noir, e, sim, enquanto pesquisadora atrás de elementos concretos e análises isentas, distantes de partidarismos ou visões comprometidas. Para que esse modo de proceder seja possível, toma como ponto de partida para toda e qualquer ação dois veículos independentes que assumem linhas investigativas inquietas: o The Intercept Brasil, repartição brasileira da agência de notícias internacional, e o El Pais Brasil, versão nacional do diário espanhol. Leandro Demori (editor-chefe do primeiro) e Carla Jimenez (chefe de redação do segundo) fazem as vezes de condutores, elencando as séries de armadilhas políticas e burocráticas pelas quais essa trama irá se desenvolver até alcançar o desfecho almejado por aqueles beneficiados pela ausência de um dos maiores peões desse jogo.
O ponto principal para que essa discussão tenha início foi o vazamento de mensagens entre o promotor Deltan Dallagnol e o juiz Sergio Moro. Esses diálogos foram registrados inicialmente em um grupo privado de whatsapp batizado de ‘amigo secreto’, e no qual aquele que supostamente deveria se portar de modo imparcial nessa questão aparecia oferecendo dicas e pareceres a apenas um lado da ação. A proliferação de notícias propositalmente falsas – as populares ‘fake news’, que não são enganosas por descuido, mas por intenção – vão desde situações absurdas, como o desaparecimento de uma “cruz de Aleijadinho” do patrimônio da República (o que depois se verificou sem fundamento) até episódios trágicos, como Lula não ter podido estar presente na morte de um dos seus irmãos e nem mesmo no falecimento do seu neto. O envolvimento da empreiteira Odebrecth, a fragilidade da acusação, a maneira pouco específica como o caso foi sendo especularizado pela imprensa (o que muitos chamam de ‘corrupção’ seria, no entanto, melhor deliberado como ‘peculato’) e as consequências destes feitos são apenas alguns dos olhares exercidos. É como um imenso quebra-cabeças, no qual cada uma das suas peças vai sendo analisada individualmente, deixando a tarefa de uni-las em um só cenário ao espectador.
Com pouco mais de 120 minutos de duração, a figura do presidente Jair Bolsonaro – aquele que mais ganhou com toda essa farsa – só entra em cena após 1h13min de projeção. Ou seja, é fácil concluir a relação dele com tudo isso, e portanto não há por que impingi-la à audiência desnecessariamente, a não ser quando se torna imprescindível, visto seu despreparo para o cargo que ocupa e o perfil pérfido através do qual estabelece suas artimanhas. A atuação atrapalhada durante a pandemia do Covid-19, exemplificada na notória reunião com seus ministros, na qual Ricardo Salles, então responsável pela pasta do Meio Ambiente, afirmou ser importante aproveitar a preocupação com a saúde para “passar a boiada”, é mais do que suficiente, passando por revelações consistentes – como a interferência de agentes norte-americanos em solo brasileiro – e o destino desastrado de Sergio Moro na política, apenas alguns dos aspectos que merecem não apenas um profunda reflexão, mas um debate intenso entre as partes interessadas. Pois a essas não cabe só aprender com o passado, mas também se preparar para um futuro minimamente auspicioso. Amigo Secreto pode ser acusado de muita coisa – longo demais, redundante, circular – mas são essas também as definições que melhor se aplicam ao seu objeto de estudo: um sofrido país que ainda anseia por se encontrar.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Robledo Milani | 9 |
Ailton Monteiro | 6 |
Alex Gonçalves | 4 |
Arthur Gadelha | 6 |
Isabel Wittmann | 6 |
Celso Sabadin | 7 |
MÉDIA | 6.3 |
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