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Sinopse

Após roubar um carro em Marselha, Michel Poiccard ruma para Paris. No caminho mata um policial, que tentou prendê-lo por excesso de velocidade, e em Paris persuade a relutante Patricia Franchisi, uma estudante americana com quem se envolveu, para escondê-lo até receber o dinheiro que lhe devem. Michel promete a Patricia que irão juntos para a Itália, no entanto o crime de Michel está nos jornais e agora não há opção. Ele fica escondido no apartamento de Patricia, onde conversam, namoram, ele fala sobre a morte e ela diz que quer ficar grávida dele. Ele perde a consciência da situação na qual se encontra e anda pela cidade cometendo pequenos delitos, mas quando é visto por um informante começa o final da sua trágica perseguição.

Crítica

Esta obra-prima não existiria sem a maiúscula importância dos cinemas norte-americanos de gângster e policial à formação de Jean-Luc Godard, primeiro, como cinéfilo, e, segundo, enquanto crítico. O protagonista, Michel Poiccard (Jean-Paul Belmondo), é um decalque de personagens marcantes de realizações estadunidenses dos gêneros supracitados, de homens que constantemente afrontam a legalidade, seja para afirmar-se no mundo do crime ou, apenas, a fim de romper os grilhões das convenções. Todavia, especialmente por seus enunciados formais, esta produção é considerada uma divisora de águas, verdadeiro emblema da geração nouvelle vague, que fez a sétima arte avançar diversas casas evolutivas com o seu modo livre de filmar a pulsação da vida. Característica basilar de Acossado, vista em múltiplas esferas, o sintomático intercâmbio entre França e Estados Unidos surge expressivamente tanto no amor demonstrado pelo cinema quanto no equivalente de Michel por Patricia (Jean Seberg).

Acossado é fruto de um processo antropofágico de Godard. No seu longa-metragem de estreia, com roteiro de François Truffaut, ele subverte abertamente cânones e signos estabelecidos em Hollywood para moldar um marginalizado tipicamente francês, cujo charme advém, exatamente, da forma como alude a figuras específicas do cinema norte-americano. No plano meramente formal, prevalece a utilização ostensiva dos chamados jump cuts, cortes que provocam sobressaltos entre as tomadas, às vezes dentro do mesmo plano. Com isso, o então jovem franco-suíço propõe repetidamente ao espectador que entenda aquilo como um espetáculo articulado, prescindindo, assim, da necessidade de criar uma ilusão de veracidade, sem a qual pretensamente não haveria adesão. Emblemática nesse sentido é a cena em que Michel assassina banalmente o patrulheiro. A sequência é feita de cortes abruptos, de quebras na continuidade espaço-temporal, resultando numa urgência logo deliberadamente contradita.

O contorno policial dá lugar ao romance em Acossado a partir do instante em que Michel reencontra Patrícia anunciando o jornal New York Herald Tribune em plena Avenida Champs Elysees. Sem descaracterizar o personagem, Godard mostra-o tentando toda sorte de trambiques, mas rendendo-se ao amor pela nova-iorquina, ao ciúme por vê-la beijando outro homem, à impaciência diante de suas recusas de reprisar as intimidades de outrora. Os diálogos transitam organicamente entre questões supostamente mais relevantes, como as consequências de uma gravidez não programada, e outras pertinentes à certa imaturidade, inclusive emocional, de ambas partes desse casal. O codinome Laslo Kovacs, utilizado pelo protagonista para despistar as autoridades, é referência ao grande diretor de fotografia húngaro que fez história em Hollywood. Já a mania de passar os dedos nos lábios, vista frequentemente, é uma das tantas menções ao astro Humphrey Bogart.

Jean-Paul Belmondo pode ser considerado uma espécie de coautor, na medida em que se entende a centralidade de sua composição à consolidação das intenções criativas de Jean-Luc Godard. O cineasta faz uma belíssima provocação cinematográfica, em semelhante medida, proposição de novas formas de articular as ferramentas narrativas, e carta de amor aos colegas – inclusive ao compatriota Jean-Pierre Melville, aqui numa ponta – que se detiveram na apresentação de figuras moralmente dúbias, relegadas às sombras por apresentar determinados traços socialmente censurados de inconformidade. Acossado extrai sua potência das deambulações e colóquios do casal anticonvencional pela efervescente Paris, cidade que não parece sossegar nas bordas da imagem, e do ímpeto vanguardista de retrabalhar elementos por meio de uma apropriação sentimental/intelectual. Certamente, o cinema moderno não seria o mesmo sem o surgimento de algo com tamanha inventividade.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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