Crítica

O ano de 1934 foi bastante complicado para os cidadãos norte-americanos em particular. Cinco anos antes, em 1929, teve início uma das maiores repressões econômicas da história do país com a quebra da Bolsa de Nova York. E antes do final da mesma década teria início a Segunda Guerra Mundial, período de contenções e inseguranças. Ou seja, mais do que nunca a população precisava se divertir e esquecer dos seus problemas diários. Nada melhor para isso, portanto, do que um filme leve e envolvente, sobre o amor impossível entre uma herdeira milionária e rebelde e um jornalista pé rapado e duro na queda. Juntos, os dois abrem mão de suas convicções para viverem um sonho ao alcance de qualquer um. Pois é exatamente isso que Aconteceu Naquela Noite oferece: a fantasia do cinema de uma maneira próxima e de fácil identificação.

A mocinha se recusa a aceitar os conselhos do pai e decide fugir para, enfim, consumar seu matrimônio com um piloto misterioso e aventureiro. Ela, no entanto, faz parte de uma das famílias mais poderosas da América, e sua peripécia logo estará estampada na primeira página de todos os principais jornais. Inclusive naquele no qual trabalha este repórter prestes e perder seu emprego – a não ser que se depare com uma notícia bombástica. Quando se conhecem, durante a jornada dela de Miami até Nova York – onde irá encontrar o amante prometido – ele logo percebe o que tem em mãos. Porém, sem escusas ou surpresas, deixa de imediato claro suas intenções: até concorda em ajudá-la em seu plano, desde que ela o conceda exclusividade no relato de sua ‘fuga em nome do amor’. Os dois ficam satisfeitos. A não ser, é claro, que o sentimento que irá surgir entre eles se intrometa no caminho.

Vencedor do Oscar nas cinco principais categorias – Melhor Filme, Direção, Ator, Atriz e Roteiro – Aconteceu Naquela Noite foi o primeiro a alcançar este feito raro, proeza repetida apenas por Um Estranho no Ninho (1975) e O Silêncio dos Inocentes (1991). E este reconhecimento não foi por acaso. O diretor Frank Capra apresenta aqui um dos seus trabalhos mais brilhantes, combinando com segurança e maestria os temas certos para serem apresentados a uma sociedade sedenta por entretenimento de qualidade e respeito, com a dose apropriada de originalidade e ousadia. Para tanto, baseou-se em um conto de Samuel Hopkins Adams, transformado em cinema pelo roteirista Robert Riskin, seu parceiro habitual e com quem trabalharia ainda em títulos como O Galante Mr. Deeds (1936) e Do Mundo Nada se Leva (1938), entre outros.

Nada disso seria útil se não fosse a impressionante química entre os protagonistas Clark Gable (pré-...E O Vento Levou, 1939) e Claudette Colbert. Ele não era necessariamente um novato, mas teve aqui seu primeiro grande sucesso. Ela, por outro lado, estrelou nada menos do que dois outros filmes igualmente indicados ao Oscar na categoria principal no mesmo ano – Cleópatra (1934), de Cecil B. DeMille, e Imitação da Vida (1934), de John M. Sthal. Seu poder era incrível – seu cachê foi três vezes maior do que o do seu parceiro masculino, um feito raro tanto na época quanto hoje – e ainda que tenha afirmado posteriormente ter “odiado cada dia de filmagem” e apontado esse como o seu “pior filme”, o que se vê em cena nada indica tais impressões. Ambos funcionam à precisão – a mocinha mimada e inquieta, o rapaz cheio de princípios buscando apenas ganhar a vida com charme e um pouco de sorte – e o desenlace entre eles não poderia ser mais apropriado. Suas vitórias foram mais do que merecidas, e é difícil imaginá-los melhor em qualquer outro papel senão os aqui vistos (sim, me refiro ao indefectível Rhett Butler, carismático, porém mais uma estampa do que um personagem realmente complexo).

Aconteceu Naquela Noite era um filme muito à frente do seu tempo. Mostrava homens sem camisetas de baixo (provocando revoluções na indústria de moda) e mulheres usando e abusando dos seus dotes físicos para conseguirem o que queriam, sem pena nem remorso. Seus reflexos se multiplicaram em dezenas de outros projetos similares, como A Princesa e o Plebeu (1953) ou O Casamento do Meu Melhor Amigo (1997), gerando com tamanha eficiência um estilo tão próprio que praticamente definiu um novo gênero – a screwball comedy, ou comédia maluca, algo que já existia desde Shakespeare e que a partir deste filme é que se tornou oficial. O melhor, no entanto, é perceber como, mais de 80 anos após seu lançamento, continua atual e bastante eficiente. Um clássico eterno, que não será nunca eclipsado.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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