Crítica


7

Leitores


11 votos 7.4

Onde Assistir

Sinopse

Quando uma criatura foge do cativeiro, encontra refúgio no topo de um prédio. O Yeti é descoberto por uma garota triste, tentando lidar com a perda recente do pai. Apesar do medo inicial, os dois se ajudam e protegem. Ao descobrir que o monstro vem do Evereste, a garotinha embarca numa viagem através de toda a China para devolver o novo amigo ao seu lar.

Crítica

A animação chinesa se abre com uma cena surpreendente. Antes mesmo de presenciar a fera, uma das protagonistas da trama, enxergamos o mundo por seus olhos. O olhar de cima para baixo transparece a imponência do animal, reforçada pelos grunhidos e pela velocidade com que se desloca por um laboratório protegido. A reação dos humanos ao olharem o monstro (e o espectador, por extensão) é de espanto, medo, implicando na necessidade urgente de se proteger, em primeira instância, e de atacar, logo em seguida. Curiosamente, nos primeiros minutos de Abominável, o espectador se torna o monstro a quem se olha com espanto e repulsa. A empatia será a chave de entrada para compreender os personagens principais do filme, jovens marginalizados, incompreendidos pelas pessoas ao redor, buscando alguma reconexão efetiva ou simbólica com a família.

De certo modo, a trajetória proposta não possui nada propriamente inovador ou ousado: os diretores Jill Culton e Todd Wilderman valorizam os laços familiares, a aceitação da diferença, o respeito à natureza, o desapego aos bens materiais, a coragem, a empatia, a solidariedade etc. No entanto, os caminhos empregados para entregar esta mensagem despertam interesse, sobretudo no terço inicial. A apresentação da megalópole onde vive Yi com a mãe e a avó é marcada por uma sobreposição asfixiante de arranha-céus, letreiros luminosos, habitações paupérrimas espremidas ao lado de grandes corporações. A riqueza de detalhes, texturas e volumes nesta animação é digna dos melhores estúdios de animação do mundo – vide a construção do terraço do prédio de Yi, com os varais de roupas cercados por um mar urbano tão belo quanto caótico. Este cenário contribui a descrever o estado de espírito da garotinha, sentindo-se solitária entre a multidão, e atraída por um sonho tão distante de sua realidade (chegar ao monte Evereste) quanto o monstro que busca esconder.

A sensação de sufocamento é transmitida tanto pela densidade demográfica quando pela relação da juventude com as tecnologias digitais – vide o primo de Yi, considerado fútil por ela e pelo filme, ao dedicar a vida ao telefone celular e aos tênis novos. Em oposição a ele, a narrativa oferece a magia da natureza: o Yeti fugitivo é capaz de entoar canções, adquirir contornos fluorescentes e modificar a natureza ao redor, fazendo crescer flores e frutos. Deste modo, a garotinha possui dois modelos a seguir diante de si: embarcar no futuro capitalista ao qual parecia destinada (ela multiplica os trabalhos mal pagos para esquecer a saudade do pai) ou procurar um resgate de sua essência através das maravilhas da natureza. Obviamente, a alternativa sugerida é o retorno à fonte, através de um passeio turístico pela China profunda, tão referente aos cartões postais reais quanto livre para imaginar o ataque de mirtilos gigantes e o voo apoiado em caules de flores. Para o filme, a felicidade e o sonho são possíveis apenas pelo meio da natureza e do desapego da contemporaneidade.

O uso da magia, ainda que pontual, pode ser questionado enquanto atalho narrativo fácil demais. Embora os poderes imprevisíveis do Yeti deslumbrem pela fantasia de cores (a exemplo do mar com ondas de pétalas), estes recursos se tornam acessórios dentro da trama: cada vez que Yi e seus comparsas se veem encurralados pelos cientistas, o animal simplesmente improvisa alguma saída milagrosa capaz de postergar um pouco o desfecho da trama. Tendo a habilidade de interferir na natureza, se deslocar pelos ares e fugir invisivelmente, por que o animal sequer precisaria da ajuda dos humanos? Do mesmo modo, outros recursos fáceis passam a incomodar, a exemplo dos discursos didáticos sobre a perseverança e a importância de acreditar em seus sonhos, ou ainda a designação de um vilão cruel sobre quem depositar todo o antagonismo do filme. Ora, a narrativa se sustentava muito bem tendo a própria dificuldade da travessia e a autoaceitação como principais obstáculos.

Mesmo se infantilizando rumo ao final, Abominável encontra uma maneira notável de aproximar a garota do monstro, para além do viés óbvio da amizade. A trama passa a identificá-los, em paralelo, como guias e figuras familiares um do outro. Afinal, quem está guiando quem nesta viagem? Yi não se torna a figura materna para a fera-criança, enquanto o monstro peludo simboliza o pai perdido? O roteiro permite ir longe nas associações ao utilizar os símbolos do violino, das flores, da comida da avó, enquanto amarra todas as suas pontas – à moda antiga, com direito a uma conclusão trágica e irônica aos vilões – e se lança numa autorreflexão mais profunda que os simples ensinamentos edificantes. Enquanto isso, faz uso de um imaginário visual distante dos padrões ocidentais ao dispensar explicação, ignorar a necessidade de um antes ou depois (os diretores se permitem lançar coadjuvantes reincidentes ou cenários repetidos sem real importância, apenas pelo deleite estético).

O próprio fato de o animal ser apelidado “Evereste” pelas crianças funciona como bela metáfora lúdica: afinal, a impossibilidade de se escalar o Evereste representa a noção do obstáculo intransponível, mas também o sonho da fuga e o imaginário de uma natureza fantástica, tão ameaçadora quanto majestosa, capaz de fornecer muito mais encanto do que o mundo tedioso dos celulares e das competições mesquinhas entre os adultos da cidade. Quando as modas passarem e a adolescência de Yi se esgotar, ela ainda terá a montanha estática, firme, resistente a todos, a exemplo dos Yeti, tão complexos que se escondem, por medo de não serem compreendidos. Não por acaso, mesmo quando circula na cidade, o Yeti não é visto pela multidão: de acordo com o filme, estaríamos todos ocupados demais com as angústias cotidianas, com nossos celulares e contas a pagar, para prestar atenção em valores e belezas perenes ao nosso redor. O Yeti, em sua configuração ao mesmo tempo bestial e mágica, se torna a possibilidade simbólica de unir o instintivo e o racional, o monstro e o sábio.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)

Grade crítica

CríticoNota
Bruno Carmelo
7
Robledo Milani
6
MÉDIA
6.5

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *