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Sinopse

Marcelo, um dândi de 40 anos, conta suas memórias de família e de algumas de suas vidas passadas.

Crítica

Nu, e contorcido numa posição nada confortável, Marcelo (Marcelo Diório) recita um poema romântico. O cu está voltado para cima, em destaque, ocupando o espaço que normalmente se reservaria à cabeça. Sim, o termo no caso é “cu” mesmo, ao invés de “ânus”, pelo orgulho de se afirmar enquanto tal, sem eufemismos nem disfarces. A primeira imagem sintetiza o procedimento deste filme que propõe um encontro entre a sensibilidade erudita e a popular, entre as percepções da elegância e de imoralidade ligada ao sexo. A Rosa Azul de Novalis transforma o protagonista num misto de Sade e Casanova do século XXI, ensimesmado, pornógrafo, culto e místico em igual medida.

O procedimento adotado pelos diretores Gustavo Vinagre e Rodrigo Carneiro é bastante peculiar. Os cineastas filmam Marcelo dentro de sua casa, transformando a câmera em personagem, incluindo as perguntas em off, porém sem revelarem seus rostos e corpos. O protagonista interage com essa voz fantasma e este olhar subjetivo que se confunde com o olhar do público, reforçando o voyeurismo da trama. Mesclando a aparência naturalista da linguagem documental com a artificialidade inerente à performance, o filme faz com que Marcelo se aproxime e se afaste dos códigos da ficção. Dentro de um mesmo plano, após um depoimento realista e comovente, a câmera desliza para um canto do cômodo onde atrizes encenam um velório pouco verossímil, quando o cadáver é visto em plano próximo, as narinas ainda respirando. A narrativa mistura a seriedade sepulcral e a chacota de si mesma, produzindo uma frutífera alternância de tons.

Este recurso vale tanto para o aspecto terapêutico da trama (as confissões de incesto e fetiches) quanto para a prática do sexo em si, tão crua quanto paródica, voluntariamente exagerada pelo ator (no caso da primeira cena) e pela câmera (no caso da segunda cena). Marcelo Diório possui pleno controle desse dândi que enxerga a si mesmo como obra de arte, sendo ao mesmo tempo criação e criatura. “Eu tenho que ser inútil”, revela ao entrevistador-diretor, quando questionado sobre a ausência de uma profissão. “Eu sou inútil, como tudo o que importa”. Ora, a inutilidade enquanto valor se encontra na base da construção artística, em oposição a formas de comunicação pedagógicas (a escola, a religião). Neste momento, Marcelo confessa de seu caráter fictício: ele não é artista, ele é a arte, e assim sendo, não precisa desempenhar qualquer função social. Talvez por isso a câmera sequer deixe a casa – é o mundo externo que vem se embrenhar entre quatro paredes.

Talvez o limite deste despojamento pop, que mistura filosofia e cu, poesia e sugar daddies em aplicativos de pegação, seja o aspecto pedante da colagem de referências. A arrogância do protagonista justifica parte dessas citações, porém o filme inclui suas próprias marcas e nomes de pensadores que não pretende desenvolver. Livros de Kafka são empilhados pelos cantos, enquanto nosso (anti-)herói se questiona: “Será que Bataille ficaria horrorizado com a banalização que eu faço das imagens dele?”. Nestas cenas, o senso de superioridade do personagem contamina também o filme, e o olhar da direção perde o distanciamento em relação a ele. Se Bataille, Kafka, Foucault e todos os outros não servem para desenvolver um conceito nem uma estética específicos, eles se tornam marcas, acenos retóricos visando sugerir a erudição de Marcelo e dos próprios criadores. Por esta razão, explicações como a da rosa azul, “essa coisa que não existe, mas existe”, se tornam fracas dentro de um filme tão dependente desta metáfora. Aos menos, o resgate da rosa durante um momento de sexo se revela muito mais feliz por combinar novamente gozo e classicismo.

Desde que foi exibido pela primeira vez em festivais, A Rosa Azul de Novalis tem despertado debates sobre a exposição da nudez, do sexo e, mais especificamente, do cu no cinema. Ora, além de não constituir o foco do projeto, o retrato tampouco soa gratuito. A surpresa diante do cu de Marcelo diz muito mais sobre a nossa dificuldade de lidar com o corpo do que sobre a representação deste. Aqui, sexo jamais se confunde com pornografia (por mais que o personagem goste de filmar a si mesmo transando, estas imagens não são oferecidas ao espectador), nem mesmo com a idealização de corpos. O ato sexual, como nos últimos trabalhos de Vinagre, aproxima-se do performático, a exemplo da bela cena final. Curiosamente, a entrada literal da imagem dentro de um cu se aproxima de outro filme recente, Fakir (2019), de Helena Ignez, no qual a câmera investiga a parte interna de uma vagina. São projetos de dois diretores jovens e uma diretora veterana, porém todos os três radicais, e dispostos a romper com os tabus do gênero e da sexualidade por perceberem que a política, hoje, passa necessariamente pela reconfiguração dos corpos.

Filme visto no 27º Festival Mix Brasil de Cultura da Diversidade, em novembro de 2019.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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