A Parte dos Anjos
Crítica
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Sinopse
Robbie (Paul Brannigan) escapa, por pouco, de uma sentença de prisão. Ele acaba de ter um filho com a namorada Leonie e promete que o futuro do primogênito será diferente de tudo que viveu. Durante o serviço comunitário, ele conhece pessoas que enfrentam a mesma dificuldade de encontrar emprego e descobre um dom em degustação de whisky, que pode mudar suas vidas para sempre.
Crítica
Ken Loach conhece os atalhos. Porque fazer um filme político não é assumir um discurso, mas sê-lo, e ser assim não é ser diferente do outro, mas próximo a ele. Rir com ele. A política trata da convivência entre diferentes, nos dizeres de Hannah Arendt, pois justamente está ancorada na pluralidade dos homens. O mundo é outro, os personagens são outros, embora não menores que antes, não menos representativos de uma determinada condição social. Isto é, A Parte dos Anjos tem um tom sociológico. Pois está lá a crise econômica, a questão religiosa, a necessidade de emancipar-se, a perspectiva de viver não como lhe mandam, mas como você quer viver – sem ceder ao sentimentalismo bobinho e desproporcional em relação à própria espessura dramática da sociedade européia média. Estão lá ora através de sutilezas, ora com verborragia. Se a ideia era uma comédia de situações (não de costumes) acompanhada de um peso dramático inseparável do contexto real daqueles personagens e daquele mundo, eis que temos a fórmula da equação. Esse é o estatuto da imagem de Loach: realizar a dobra do corpo, enxugar a doença de si, abraçar o impossível sem curvar-se diante da sua própria ideia de impossibilidade.
Até porque A Parte dos Anjos é uma comédia sem piadas, onde a condição do riso escapa a sua própria caracterização humana: a piada está condicionada ao seu reflexo social. Com isso, no entanto, não há necessariamente uma politização do humor a ponto de podermos dizer que se trata de uma comédia política (uma rotulação bastante vaga), o que não pode haver é, ao contrário, a sua despolitização. O riso não é um gênero menor incapaz de articular um discurso político, mas ele o faz com a consciência de que isso deve permear a história, não moldá-la. É por isso que Loach e toda a envergadura de sua câmera radicalizam a imagem e o riso por dentro, com a possibilidade do real fazendo apenas pano de fundo à necessidade da ficção. A graça do filme está plenamente em sua falta de bom humor na medida exata em que temos o estopim de uma forma de riso: o riso dos loucos (o bom humor é aquilo que é socialmente aceitável, o que em Loach é mais um amor pela revolta do que uma ode às banalidades cômicas). Sem emprego, marginalizados e sem perspectiva alguma num futuro próximo, um grupo de jovens que escapa da prisão com a realização de serviços comunitários como meio de pagarem por suas infrações, conhece Harry (John Henshaw), supervisor dos serviços. Com Harry, eles viajam para destilarias escocesas e lá conhecem uma possibilidade de resistência.
Harry se oferece de ajudar Robbie (Paul Brannigan), que logo assume o protagonismo da ação, não consegue desvencilhar-se do seu passado, que é histórico/sociológico, pois precede sua própria existência – a rivalidade dele com uma gangue foi herdada do pai. Ao mesmo tempo em que sua esposa coloca seu herdeiro no mundo e se preocupa com a possibilidade do filho acabar dando continuidade à rixa que acompanha as gerações, ele é espancado pelos tios da menina, que exigem que ele se afaste dela. O impacto desse peso histórico prejudica sua vida, que definha diante da crueza das relações e não se perde diante da necessidade de inserir os antagonismos que compõem o tecido social britânico: A Parte dos Anjos é um filme sobre desajeitados, e os constrói um pouco desajeitadamente. Mas a potência reside claramente naquilo que ele abraça. Do rico ao pobre, todos flertam com a ilegalidade ou no mínimo aproveitam-se de suas consequências. Mesmo que os personagens resultem profundamente inacabados, pois são sintomas de sua intimidade mais comercial possível, não poderia haver outra forma de mostrar esse submundo sem roubar-lhes a sensibilidade – algo como um grupo de corpos (vivos) no necrotério que não existem para além de si mesmos. Não importa o que aconteça, o mundo é assim, resta driblá-lo. Os anjos que se fodam.
Mas Loach filma cada sequência com a gramatura que as imagens pedem. Quando o que explode na tela é uma agressão, a câmera toma corpo e vira personagem, aproxima-se da experiência real e do sangue, quando a tensão é latente, a mise en scène mostra sua força e corporifica a ação. Muito mais através da própria estética do que por qualquer presunção de um discurso político satisfeito com o mundo, logo fica claro que a tal parte da bebida que evapora, em verdade, não pertence aos anjos, mas aos demônios sociais, isto é, a Robbie e os demais delinquentes. Eis a grande estratégia de Loach, fazer com que a metáfora do uísque e toda a brincadeira que faz parte da viagem não seja mais que a consciência de condições sociais caras à Europa contemporânea.
Se o capitalismo (e sua crise) é também um tema no filme, o é especialmente porque faz parte do jogo estético-político enquadrado. Roubar o uísque mais caro do mundo para vendê-lo a um colecionador é a síntese da mercantilização de nossa própria existência. E se ainda podemos pensar em um cinema que, mesmo com algumas dificuldades, consegue se manter conectado com sua realidade externa sem confundir a política com sua caricatura, então estamos falando de coisas sérias.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
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Marcelo Müller | 6 |
MÉDIA | 6.5 |
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