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Sinopse

Um retrato de Helena Ignez, uma das principais atrizes do cinema brasileiro, além de dançarina e diretora. Ela narra sua própria história, destacando o primeiro contato com o teatro, os principais filmes, a descoberta da vontade de dirigir filmes e a luta permanente contra o machismo na sociedade.

Crítica

“Eu sou um desses personagens reais que perguntam quem sou eu”. Helena Ignez representa uma figura fascinante dentro do cinema brasileiro, por ter atravessado alguns dos períodos mais vigorosos da nossa cinematografia, estrelando as principais obras do Cinema Marginal e reinventando-se enquanto diretora após os 60 anos de idade, sem jamais perder a radicalidade. Normalmente associada em artigos e livros de história pelos homens com quem se relacionou, aqui ela ganha uma versão por si mesma, uma estrela dotada de “luz própria”, controlando a própria narrativa, como num presente generoso da filha e diretora deste projeto, Sinai Sganzerla.

Parte considerável dos méritos deste documentário provém da própria atriz, dançarina e cineasta. Muito franca, ela narra tanto os traumas quanto as conquistas, enaltecendo os filmes em que participou sem vangloriar a si própria. O fio condutor, para além da trajetória no cinema e nos palcos, encontra-se na luta contra o machismo que lhe tirou a guarda de uma filha e criou uma imagem de mulher libertina, infrequentável, que ela combate incessantemente. A diretora possui visível delicadeza ao passar por momentos dolorosos da vida da mãe, ainda que não deixe de mencionar nenhum deles. Vale notar que, para um documentário em família, a exemplo de tantos que ocupam os cinemas recentemente, este não visa enaltecer as qualidades em estilo homenagem, nem provocar conflitos para o prazer perverso das câmeras. O espectador se depara com uma câmera aberta para Ignez contar a si mesma como quiser, cabendo à diretora escolher posteriormente as imagens que caibam neste discurso.

Por esta razão, o projeto adota uma trajetória estética convencional. Parte-se da infância e juventude aos anos atuais, até os filmes mais recentes (A Moça do Calendário, 2017, Fakir, 2019). A narrativa move-se somente pela voz de sua protagonista, enquanto as imagens limitam-se ao uso referencial e ilustrativo: quando Ignez narra suas liberdades, vemos imagens de personagens ousadas de seus filmes; quando cita passagens traumáticas, deparamo-nos com personagens tristes. O uso de material de arquivo reflete a fartura de imagens e vídeos à disposição, porém evita construções em que a imagem não se subordine ao som. A montagem alterna entre o passado, com fotografias e trechos de filmes, e o presente, incluindo passeios de Helena Ignez por cartões postais de São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, que desempenharam papéis importantes em sua história.

No presente, a atriz mistura o realismo documental dos passeios com sua presença enquanto performance, personagem de si mesma, criando coreografias improvisadas para a câmera, com chapéus e tatuagens de henna. É fundamental para o filme comprovar que sua personagem não está apenas narrando um passado de glória: Helena Ignez jamais perdeu o vigor, jamais deixou o cinema nem os palcos, revelando uma produtividade impressionante nos últimos anos. Ou seja, rompe-se com a nostalgia dos tempos áureos devido a uma protagonista que se mantém, década após década, no centro da produção audiovisual brasileira. Por mais tradicional que seja a estrutura fílmica, no uso excessivo de trilha sonora (a maior parte das músicas está literalmente colada uma na outra pela edição) e na linearidade, o filme consegue transmitir o caráter inventivo de sua protagonista, algo essencial para qualquer retrato sobre Helena Ignez.

Por fim, interessa ao projeto que a atriz se torne tão autora deste projeto quanto a própria Sinai Sganzerla. Existe um senso de humildade nesta entrega do discurso à mãe, mas também paira a ideia de um trabalho colaborativo, numa postura política importante da parte de ambas. Mãe e filha, artistas dentro uma família de muitos artistas, não fazem política nas horas vagas, nos bastidores entre filmagens: sua arte constitui um ato de resistência em si, posicionando a mulher no centro da imagem, reforçando o direito de dispor de seu futuro e de seu corpo como bem entender.

Simone Spoladore, Djin Sganzerla e outras mulheres dirigidas por Ignez se fundem neste imaginário de figuras femininas livres, que enfrentaram o machismo fortíssimo das décadas de 1950-60 e também aquele que reaparece num Brasil conservador. Aliás, o momento político infelizmente torna a luta da artista cada vez mais atual: as pressões da sociedade católica que ela enfrentou durante a juventude não se diferem tanto daquelas contra as quais continua lutando, mais de sessenta anos depois. O posicionamento de Helena Ignez, na sociedade e no cinema, assim como a imagem que fizeram dela e que ela faz de si mesma, constituem atos políticos em si.

Filme visto na 6ª Mostra de Cinema de Gostoso, em novembro de 2019.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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