Crítica


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Sinopse

O decurso do tempo é sentido nas imagens resgatadas, tornadas partes do presente por conta das encenações rigorosas à câmera. Um filme-ensaio afetivo.

Crítica

“Aquilo que o ser humano não consegue compreender, ele inventa”. A frase disparada por um personagem resume o ponto de partida deste drama autobiográfico. Como lidar com a morte de uma mãe? Uma esposa? O que fazer com os objetos deixados pela pessoa amada, ou ainda com a casa um pouco mais vazia, com os sonhos insistentes a respeito dela? Como aceitar o fato de que o filho pequeno um dia cresce e se torna independente dos pais? A partir da própria dor, a diretora Catarina Vasconcelos mergulha em uma série de perguntas sem respostas. Por isso, inventa, construindo seu longa-metragem exclusivamente por meio da sucessão de imagens poéticas. O pássaro se torna o símbolo central deste estudo sobre a família e o luto, visto que as aves chegam não se sabe de onde, partem quando menos se entende, reinventam-se pela troca de penas. A cineasta busca na natureza (o que inclui os rios, as árvores, as montanhas, a bruma) a chave para representar não as pessoas com quem viveu, mas o sentimento nutrido por elas. Teria sido fácil recriar a cena literal da perda da mãe. O filme prefere investigar alternativas para ilustrar em imagens o amor e a dor.

Há raros personagens em cena, pouquíssimos rostos e interação praticamente nula entre os corpos. A Metamorfose dos Pássaros (2020) privilegia a representação pela ausência, buscando indícios da mãe falecida, do filho que não para mais em casa, e do pai marinheiro, sempre distante. Desfilam em telas dezenas de cenas compostas como pequenos quadros, espécie de naturezas mortas às quais o drama faz alusão. A janela próxima do quadrado (4:3), a textura da película granulada e a fotografia de fortes contrastes favorecem o tom de pesar e o aspecto solene. Para atribuir dinamismo aos enquadramentos estáticos de conteúdo imóvel, a narração se encarrega do contraste necessário. Não se para de falar um minuto qualquer sequer ao longo do filme português. No entanto, há falas distintas em tom, origem e discurso: o pai, a mãe, a filha e os irmãos falam cada um a seu turno, em fases distintas da vida. Ora releem a carta que eles mesmos escreveram, ora leem a carta recebida. Em outros momentos, conversam consigo mesmos, como num processo terapêutico ou confessional. Às vezes, sussurram impressões e segredos íntimos. De todo modo, recusam-se a explicar ações: as múltiplas vozes optam por um estilo que poderia ser descrito como poesia em prosa, através de um texto fortemente lúdico que remete ao estilo do grande Valter Hugo Mãe.

O aspecto mais determinante da estética do filme se encontra na dissociação entre som e imagem. As narrações em off (nunca vemos as pessoas que falam, no instante em que falam) evocam estados de espírito, reflexões acerca da natureza ou da passagem do tempo. Enquanto isso, o espectador se depara com objetos espalhados pela casa, cenas da natureza, fragmentos de corpos (uma mão, um close muito próximo do olho). A reunião dos cinco irmãos após a morte da mãe se traduz na composição barroca de jovens adultos imóveis em suas poltronas, seja de costas para a câmera, seja em uma posição onde a luz oculte seus rostos. A sobreposição de significados díspares nos convida a aproximar som e imagem, estipulando que as flores metálicas de um bibelô representam as flores reais narradas pelo pai; ou que a tentativa de erguer uma árvore tombada reflete a vontade da protagonista de trazer a mãe de volta à vida. Há relações mais ou menos diretas, solicitando ao espectador uma postura ativa. Somos convidados a efetuar ligações entre inúmeros fragmentos dispersos pela narrativa, assim como a projetar nossas experiências pessoais nas referências de amor e perda familiar.

A Metamorfose dos Pássaros dialoga com muitas outras artes além do cinema. A narração possui caráter fortemente literário, enquanto a sucessão de quadros busca a força da fotografia still, como se presenciássemos uma elaborada sessão em estúdio, com objetos, figurinos e iluminação cuidadosamente compostos. A casa é filmada com a frontalidade de um palco teatral, algo reforçado pelo fato de os corpos não interagirem com este espaço, limitado a um pano de fundo. O enquadramento e a textura dos planos evocam as artes plásticas. A insistência nos gestos das mãos arrumando objetos sobre a mesa, fazendo uma trança nos cabelos ou tentando colar de volta as folhas caídas das árvores remete a uma coreografia. Já a disposição dos personagens, emudecidos e posando para a câmera, dialoga com as performances. O filme adquire um caráter erudito, tanto pelas palavras quanto pelas composições, característica que pode ser admirada por inúmeros espectadores e rechaçada por tantos outros. Ainda que transborde de afeto (o final se revela devastador) ainda sustenta uma forma tão admirável quanto intimidador. O dispositivo proposto desde a cena inicial jamais efetua concessões para incluir som referencial ou a presença dos personagens em cena. Do começo ao fim, somos confrontados a (imagens) fantasmas.

Deste modo, Vasconcelos efetua uma forma particularmente rígida de cinema do controle. Mesmo em ficções, alguns diretores se abrem aos acasos produzidos diante dos seus olhos, aos possíveis ruídos de linguagem ou excessos decorrentes do processo criativo. Entretanto, a cineasta efetua um caminho oposto, determinando cada aspecto de seu quadro, como se desenhasse sobre uma folha em branco. Quando uma garota se senta ao piano, por exemplo, não há um mísero detalhe fora do lugar: os cabelos da jovem, a luz, o lugar exato em que deposita as mãos, a pintura na parede, a cadeira ao lado, são dispostos com precisão cirúrgica. O resultado é deslumbrante em seu prazer de composição, porém asfixiante enquanto representação. Como é irônico, e ao mesmo tempo pertinente, representar a saudade sem recriar o contato humano! O filme apela ao estímulo intelectual diante das imagens e do texto, em conjunção com a descrição puramente emotiva do amor familiar. Talvez não se possa acusar o projeto de frieza, mas de uma obsessão pelo comando ao limite do neurótico (ainda mais do que já pressupõe a mise en scène). Diante de tantos acontecimentos que fogem ao nosso alcance (a morte, em especial), a cineasta ergue um mundo compensatório onde pode determinar cada gesto ou ação, produzindo uma linda e dolorosa via para o processo de luto.

Filme visto online no 9º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, em outubro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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