Crítica
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Crítica
Numa sociedade cada vez mais individualista e polarizada, um dos maiores exercícios que o ser humano pode se propor é o da empatia, se imaginar no lugar daquele ao seu lado, do desconhecido, de quem não conhece e nem mesmo entende, mas, ainda assim, reconhece seu espaço e importância. A identificação desse lugar tão próximo e, ao mesmo tempo, tão distante, tem se revelado um desafio crescente, seja num convívio entre interesses compartilhados, ou potencializado, entre povos e culturas de origens e referências completamente distintas. A Invenção do Outro, longa de Bruno Jorge consagrado no 55º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, é uma aposta tão arriscada quanto direta, pois investe justamente nessa estranheza para investigar uma insuspeita simplicidade, uma realidade que a muitos poderá soar como exótica ou até mesmo inimaginada, mas que resiste, e reside, em uma relação de imensa familiaridade com o cidadão deste país ainda tão novo, e talvez por isso mesmo, tão imaturo. Ver-se a si mesmo é enxergar aquele de onde se veio e, provavelmente, uma possibilidade de caminho ao qual se dirigir. Esta é uma criação, portanto, que não parte do nada, mas, pelo contrário, se vê repleta de fontes e inspirações. É tornar real aquilo que, até então, se via apenas como imaginado. É fazer do ilusório algo concreto. É chamar de irmão quem, por tantas vezes, foi encarado como inimigo. Nesse processo encontra-se um filme maiúsculo, tanto em suas intenções, como, também, no alcance de suas realizações.
Bruno Jorge, apesar de uma formação que passou por temporadas na França, Bélgica, Canadá e Cuba, é nascido em Recife e formado em São Paulo. Experiências tão múltiplas lhe ofereceram um olhar interessado e generoso sobre uma nação que, apesar de ser sua em primeira instância, renovou essa ligação quando escolheu a ela retornar. Seu foco, porém, não se dirige apenas ao hoje, mas também – e principalmente – ao ontem, de onde veio e como tais formações permitiram a existência do indivíduo que agora por aqui habita. Ao lado de Mariana Oliva e Renata Terra, assinou o premiado Piripkura (2017) – reconhecido nos festivais do Rio de Janeiro, Cartagena e Amsterdã, entre outros – e agora retorna ao mesmo assunto, porém com um discurso que se tornou ainda mais urgente. A causa indígena dirige seu olhar, e ao comandar A Invenção do Outro de modo solo, não o faz solitário, mas pelo contrário, compartilha seu olhar, se aproximando do seu tema e, com ele, dividindo autoria. Este, portanto, é um filme tanto dele, posicionado atrás das câmeras, como destes em frente a ela. Entre esses, por exemplo, estão Xuxu, o índio que por vezes se torna também condutor, e Bruno Pereira, o indigenista que assume o importante papel de tradutor e guia entre mundos tão distantes, ainda que semelhantes.
Para tanto, importante se situar em meio à profusão de eventos que levam ao cerne da narrativa. Em 2019, a Funai organizou uma expedição de retomada de contato, por assim dizer. No Vale do Javari, em plena Floresta Amazônica, região considerada de intenso conflito e disputa de terras, um grupo indígena acostumado a viver em completo isolamento da civilização acabou separado em meio aos tantos embates com garimpeiros, posseiros, madeireiros e outros criminosos que atuam de forma ilegal naquelas redondezas. Trata-se dos Korubos, e caso não houvesse uma interferência enérgica por parte das organizações que se esforçam em oferecer algum tipo de regularização e ordem ao local, provavelmente familiares e amigos de uma mesma tribo talvez nunca mais se encontrassem. Trata-se, portanto, de reaproximar uns dos outros, pais e filhos, irmãos e irmãs, amigos e parentes. Mas há um duplo perigo nessa tentativa. Primeiro, os bandidos que dominam os acessos e rios, e sem uma força-tarefa competente e hábil, qualquer busca por aproximação acabaria frustrada. Depois, há os Korubos em si, que por não saberem quem deles estaria se aproximando, poderiam interpretar estes estranhos como outras ameaças e partirem para o ataque, ou se refugiarem ainda mais, embrenhando-se na mata fechada.
Para driblar estas complicações, os oficiais do governo brasileiro – e os cineastas que os acompanham, portanto – contam com auxílios valiosos. Por um lado, há os Korubos desgarrados – como Xuxu – que conhecem e entendem estes caminhos e, através de suas orientações, procurarão pelas melhores maneiras de estabelecer esse difícil contato. E há também, claro, a experiência e o olhar apurado dos indigenistas ali reunidos, em particular o talento de Bruno Pereira. Para quem não está ligando o nome à pessoa, a explicação se faz necessária: foi ele que, ao lado do jornalista britânico Dom Philips, foi assassinado em uma emboscada durante uma outra jornada pelo mesmo Vale do Javari em 2022, meros três anos após os eventos aqui registrados. Se suas ações foram tratadas com desdenho pelo presidente da república Jair Bolsonaro e muitos na audiência só tomaram conhecimento da sua presença a partir da notícia de sua morte, eis aqui um importante relato não apenas de sua eficiência, mas também do quão vital era o seu envolvimento para essa causa. O Brasil está mais pobre sem o seu olhar, e Bruno Jorge sabe disso. Tanto que se esforça para não perder o rumo de seu filme, pois além de servir de testemunha de uma jornada singular, adquire também ares de despedida de um profissional com o qual poucos conseguem se igualar.
É certo que o documentário adquiriu outros contornos a partir do falecimento de um dos seus principais personagens. Se ganhou em força no discurso, também encontra resistência em evitar alguns resvalos melodramáticos – a reunião de irmãos, por exemplo, se no início emociona na medida por muitos imaginada, aos poucos vai se excedendo a ponto de incomodar pela repetição e excessos. Estes, porém, são detalhes, e em nada (ou em muito pouco) atrapalham uma fruição que tanto exige quanto entrega. A Invenção do Outro, portanto, se revela uma obra intensa, seja na prática, ao vivenciá-la enquanto espectador, como na teoria, pois durante o seu curso vai abrindo diversas portas rumo a uma reflexão e análise que aponta para vários lados, inclusive para si mesmo. Gestos pequenos, não mais que pormenores, podem representar a diferença entre a vida e a morte, a chegada e a partida, e reconhecer que algo tão insignificante para um pode ter uma leitura completamente diversa para aquele ao lado é surpreendente, mas também atordoante. Afinal, distâncias não se medem apenas por questões geográficas ou mais elementares, como idioma ou tradições, mas podem ser reconhecidas até no mais básico dos sentimentos. O afeto, enfim, universal e único, liga tanto uns como outros. Colocar-se nesse lugar continua sendo o maior dos desafios. Tanto para os que aqui estão, como, também, para os que já se foram, mas deixaram seus exemplos como guia.
Filme visto durante o 55º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em novembro de 2022
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