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Sinopse

Luigi Pirandello, um dos notáveis dramaturgos do século 20, dominado por uma crise criativa e em viagem à Sicília.

Crítica

Luigi Pirandello foi dramaturgo, poeta e romancista, tendo nascido no interior da Itália em 1867 e falecido aos 69 anos, em Roma. Entre os seus tantos feitos está o Nobel de Literatura, e sua obra tinha como maior característica o olhar cômico, não debochado, mas investigativo, que perseguia as razões do humor por trás de situações do dia a dia. É esta também a percepção almejada pelo diretor Roberto Andò em A Estranha Comédia da Vida, longa que combina ficção com realidade para emular uma das passagens mais interessantes da vida do autor e, consequentemente, propor uma ilustração a respeito da origem de uma das suas maiores criações, a peça Seis Personagens à procura de um Autor, lançada em 1921 e recebida com inicial frieza pelo público, mas rapidamente transformada em uma calorosa recepção nos meses seguintes, até se confirmar como o ápice do seu trabalho. O caráter vanguardista do texto e da metalinguagem proposta está da mesma forma presente neste filme que parte de leituras inusitadas e até mesmo corriqueiras para propor uma envolvente e admirável distorção entre criador e criatura, estendendo os limites entre um e outro num jogo de pontos de vista que vai além do exposto, contando, portanto, com aquilo que está apenas dito, mas sentido tanto nas palavras, como nos sentimentos.

O título original faz menção a uma “estranheza”, um misto de incômodo com insatisfação que vinha tomando conta de Pirandello (Toni Servillo, parceiro habitual do realizador, aqui numa postura mais contida, focado na observação e não tanto em suas reações) quando decide por uma viagem por sua Sicília natal. O objetivo era uma visita ao colega e mestre Giovanni Verga (Renato Carpentieri, de A Mão de Deus, 2021). Porém, esse acaba por lhe servir mais como um chamado à razão, a voz da consciência tal qual o Grilo Falante é para Pinóquio quando este não sabe mais ao certo o que fazer. A dúvida surge ao professor – a maneira como ele opta por se apresentar – quando recebe a notícia da morte de alguém que lhe é muito querido, mas com quem não mantinha contato há algumas décadas. A babá da sua infância partiu sem dele conseguir se despedir, mas isso não o impede de ir até ela e prestar seus últimos respeitos. Nessa mudança de rumo, no entanto, a fronteira entre fantasia e realidade se torna difusa, e não mais será possível determinar com precisão o que é um, e o que é outro. Estaria ele, de fato, passando por aquilo, ou seria apenas fruto de sua imaginação?

E essa mudança começa assim que entra em contato com Onofrio e Sebastiano, os agentes funerários responsáveis pelo preparo do corpo da senhora recém falecida (assim como de todos os moradores da região). Interpretados por Valentino Picone e Salvatore Ficarra, respectivamente, a dupla existe desde 1993 – conhecida na Itália pelos sobrenomes Ficarra & Picone – e é famosa pela habilidade cômica dos dois, demonstrada tanto nos palcos como no cinema e na televisão em filmes como A Hora Oficial (2017) e a série Que Cilada! (2022-2023). Estão longe, no entanto, de surgirem como trapalhões ou desnorteados, atrás de um riso fácil e descartável. Pelo contrário, são até sérios demais, provocando uma graça vivida pelas situações que se encontram e, principalmente, pelas motivações que os cercam. Sim, pois Onofrio e Sebastiano até podem levar seus dias ocupados por caixões e cerimônias de despedida, mas o que os move de verdade é o ímpeto criativo que ambos mantém sempre à tona. São escritores iniciantes, sem formação ou estudo, apenas guiados pela paixão que demonstram pelas letras. Essa é concretizada na peça teatral que montam anualmente, capaz de movimentar amigos e vizinhos, familiares e até mesmo desafetos que, em nome da arte (e de uma atividade coletiva) são capazes de deixar de lado diferenças para, juntos, embarcarem numa mesma jornada.

A dedicação e o comprometimento desse duo inesperado irá tomar conta de Pirandello. Ele pode ter ido até eles sem convite ou formalidades, mas a partir do momento em que seus caminhos se cruzam, nenhum dos lados voltará a ser o mesmo. Porém, é de se perguntar: estaria ele aprendendo pelo exemplo, ou seria o contrário? Quem ali, de fato, estaria em condição de servir de aprendizado, o mestre fatigado e desiludido, ou os amadores que vivem em um transe de ilusão e desejo, como se os figurinos e as tramas que experimentam no palco fossem capazes de libertá-los das amarras do cotidiano, abrindo portas pelas quais nunca antes haviam se permitido vislumbrar. Porém, ao tangenciar limites tão tênues, nem todos os envolvidos alcançarão o mesmo entendimento. A brincadeira irá se tornar realidade, se não para muitos, ao menos para uns poucos que poderão colocar em risco o exercício mais amplo. A crise, no entanto, quando ameaça sair do controle, servirá também de reflexo para o autor consagrado, que observa à distância e com uma frágil segurança. Afinal, o drama em desenvolvimento diante de si não seria o mesmo percorrido no embate de sua alma?

Roberto Andò propõe um inteligente campo de percepções em A Estranha Comédia da Vida, embaralhando cartas até então bem definidas em discursos que vão além do óbvio e, dessa forma, possibilitando camadas de compreensão que irão exigir da audiência na mesma medida em que se mostram dispostos a entregar enquanto desfrute e entendimento. Toni Servillo, enquanto Luigi Pirandello, oferece uma composição delicada e definitiva (a semelhança de um com o outro é impressionante), gerando a base necessária para que Ficarra & Picone transitem pelos contextos mais insuspeitos e envolventes. Do embate com o padre à uma ausência de última hora, do interesse amoroso que compartilham à desavença que os divide, do reencontro entre espinhos à união reforçada pelo amor à arte, está na inocência que tão facilmente emulam a força que com destreza exibem. Da mesma forma, irá se verificar no deslumbre do autor frente aos seus próprios personagens, já independentes e donos de suas decisões, o modo como estes lados em curso, seja o sonhado ou o concreto, estarão mais uma vez conectados. Há muito além daquilo em exibição: está no sentimento, no percorrido e, principalmente, no imaginado que estas ambições se tornarão realidade. Seja por uma noite apenas, ou por toda uma vida.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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