Crítica

A pré-história das imagens se confunde com a pré-história do cinema e da arte pictórica que o precede. Há uma forte relação estética e narrativa costurando-os ao tempo e aproximando as formas. A Caverna dos Sonhos Esquecidos parte daí para encontrar outras aproximações possíveis e, no percurso, descobre mais coisas. Werner Herzog seu une a historiadores, paleontólogos, zoólogos e outros pesquisadores para esquadrinhar a caverna Chauvet, localizada do Sudoeste da França, onde em 1994 foram encontradas ossaturas de animais não humanos e representações deles nas rochas de seu interior. A partir de alguns relatos, mas muito mais com imagens e com a narração em off que é cara ao cineasta, o filme mostra um pouco da história das formas, ou melhor, da história da arte. Uma narrativa histórica, do pensamento humano primitivo, da arte madura e rigorosa no emprego dos contornos e dos músculos, brutais e sutis. Eles vivem!

A caverna, com suas curvas e inclinações, já possui toda a distribuição geográfica tridimensional acessível ao olho, que vai além da própria necessidade do 3D embutido na câmera – o filme, na verdade, não foi filmado em três dimensões, mas convertido em pós-produção. Ora, não é tanto o uso do 3D por Herzog que vai determinar a vivacidade daquelas formas e daquelas inscrições (a forma, que não por acaso é um problema cinematográfico primordial, inerente a sua boa fruição), pois os interiores da caverna já se fazem marcados pela noção de profundidade, pelo equilíbrio entre o plano e o fundo. Quer dizer, aqueles pintores paleolíticos, ao corporificarem os animais como eram vistos no contato com o real, já faziam uma planificação bastante explícita, no sentido de que, a partir da deformidade da natureza (a forma das pedras), decerto seu material de trabalho (a tela: écran), já afastava e aproximava os corpos antropomórficos do olho, fazia deles objetos em transição, pulsantes – agora, a objetiva da câmera substitui o olho. A relação que o filme coloca, isto é, a aproximação entre a arte pictórica e um potencial cinema: uma espécie de protocinema, como diz Herzog ao observar um desenho de um animal com oito patas, dando a impressão do movimento.

Olho móvel, corpo imóvel. Se Jacques Aumont vai buscar no trem da estrada de ferro uma forma de habilitação do olhar do espectador ao mundo que passa em travelling, Herzog faz um filme que não deixa de ser um longo movimento lateral de registro do tempo e do espaço habitável. Mesmo que, como diz a narração, estejamos presos à História e os pintores primitivos não, o filme, ao mostrar dois polos que criam um diálogo bastante elucidativo (e não menos poético) entre a pintura e o cinema, não escapa à condição de representação e narratividade tão caras a pintura, a fotografia e ao cinema mesmo, assumindo, já nesse caminho, outra questão importante: o quadro, seu enquadramento, o plano e a luz. Na caverna e na projeção que o filme faz dela, existem problemas pictóricos e cinematográficos se enredando para a câmera. Os limites do campo impõem as dificuldades, a distância do “quadro” e necessidade de uma luz especial para não machucar o clima do local. Também as técnicas de iluminação dialogam esteticamente (a tocha é agora luz que se projeta a partir de um potente LED), na arte assim como na luta pela sobrevivência.

Foi construída uma plataforma estreita (com aproximadamente 60 cm de largura) no interior da caverna, atravessando praticamente toda sua extensão, e é apenas sobre ela que os pesquisadores podem se movimentar – “marcação de cena”. No filme, isso surge logo como uma questão de mise en scène. Devido ao pequeno espaço, a câmera dificilmente conseguiria filmar a caverna sem enquadrar um personagem. Os ambientes estreitos, a proximidade dos corpos, a necessidade de iluminar o local ficam evidentes. Estamos falando de um filme constituído, ao menos quando estamos na caverna, por um longo travelling. Para onde a câmera aponta, vemos sempre o desconhecido – para conhecê-lo, não meramente para saciar a curiosidade. Como “questão” cinematográfica, há também a luz e a sombra (sombra que Herzog vai buscar “ali” em Fred Astaire e a leva até o passado pré-histórico). Se os homens que frequentavam a caverna Chauvet iluminavam as rochas com fogo, cria-se uma sombra toda particular, com um corpo insinuante se oferecendo na parede. A luz do LED dá outra “cor ao ar”, modificando a percepção. Pois é também entre e o real a ficção que A Caverna dos Sonhos Esquecidos existe.

As narrativas históricas que criamos do passado anterior à invenção da escrita são elas mesmas ficções do real, imaginações coerentes a partir do material coletado nos sítios arqueológicos. A bem dizer, nada muito diferente da arte moderna, do cinema e do vídeo. As narrativas estão aí, basta filmá-las. Herzog procede assim: escuta o batimento cardíaco da caverna ou o seu próprio, absorve o silêncio revelador do passado, espreita a escuridão, percorre as paredes tomadas por desenhos de animais sobrepostos (eles estão correndo? caçando? sendo caçados?), aprofunda relação do objeto com o espectador ao dimensionar o terreno que já é cheio de nuances, relevos e geofísicas, faz perguntas sobre os sonhos, as esperanças e a família do homem de trinta mil anos. Um filme sobre coisas que estão ao nosso alcance e são ao mesmo tempo tão incompreensíveis. Teremos que olhar novamente.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do RS. Edita o blog Tudo é Crítica (www.tudoecritica.com.br) e a Revista Aurora (www.grupodecinema.com).
avatar

Últimos artigos dePedro Henrique Gomes (Ver Tudo)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *