Crítica


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Sinopse

Uma campanha midiática montada para registrar os 74 dias da guerra declarada pela ditadura argentina contra os britânicos pelo controle das Ilhas Malvinas. O poder das mídias para canalizar as diretrizes da opinião pública.

Crítica

“Essas imagens são imperfeitas, mas documentam a História”. O alerta provém de um repórter argentino, no período em que a ditadura argentina lutava contra as forças britânicas pelo controle das Ilhas Malvinas. O jornalista fazia menção às imagens tremidas dos planos aéreos durante o confronto contra os soldados europeus. De certo modo, ele se desculpava pela imagem amadora, mas exaltava a pretensa objetividade deste olhar, supostamente capaz de revelar os segredos de uma guerra aos espectadores. Em um aspecto, ele tinha razão: as imagens captadas pelos cinegrafistas da época constituem documentos, ainda que não de uma verdade absoluta. Trata-se de um registro histórico sobre como a Argentina percebeu a guerra em seu território, dentro de um regime que buscava a todo custo se apropriar da bandeira do patriotismo. O diretor Lucas Gallo parte do conflito nas ilhas, que durou 74 dias, para discutir algo muito mais amplo: a construção da História e do patriotismo através da mídia. Ironicamente, trata-se da versão dos perdedores: o cineasta decide apresentar ao espectador de que maneira a nação derrotada numa guerra percebe a si mesma enquanto o confronto acontece.

Ao invés de abarcar todos os pontos de vista, o cineasta efetua a escolha precisa de se concentrar num olhar muito específico: as emissões do 60 Minutos, um programa particularmente direitista. Ele assume então o empréstimo a um ponto de vista que não lhe pertence. Apropriar-se de materiais contrários à ideologia do criador constitui um desafio considerável: de que maneira Gallo utilizaria tantas reportagens sobre a beleza do confronto e a bravura dos militares sem se filiar a este discurso? Enquanto muitos autores confrontados ao mesmo problema preferem a chave da ironia e do cinismo (apontando contradições via montagem), o cineasta privilegia um caminho sutil, e ainda mais recompensador ao espectador: ele sublinha ao máximo o circo midiático criado pelo canal. Ao selecionar passagens inacreditáveis de adoração à guerra, sem possibilidade de ambiguidade nas leituras, ele evita ridicularizar as viúvas da ditadura, no entanto explicita de maneira quase didática o cerne de seu pensamento. As reportagens se convertem num espetáculo da brutalidade, homenageando as lutas, a “Argentina acima de tudo”, as mulheres que permanecem em casa cuidando das crianças, os representantes católicos orando pelos heróis, os ministros encarregados de enviar os homens ao combate. Por trás da aparência polida dos jornalistas, percebe-se o gosto pela violência e pelo engajamento que ela produz.

Deste modo, as imagens chegam ao espectador contemporâneo pré-significadas com múltiplos preconceitos e armaduras ideológicas. Torna-se ao mesmo tempo fascinante e incômodo enxergar a história da nação derrotada pela perspectiva da vitória certeira. Diante da gravação de jovens soldados franzinos, tremendo sob o frio local, um repórter se exclama: “Estes são os nossos homens, prontos para coisas importantes!”. Ora, que elemento naquela imagem denotaria coragem e ímpeto de ação? O registro ao vivo se torna depósito de projeções pulsionais: visto que os jornalistas desejam enxergar combatentes impiedosos, atribuem tais características aos garotos argentinos. 1982 (2019) revela não apenas a maneira como a mídia contribui a moldar a opinião pública, mas o processo pelo qual canaliza desejos reprimidos da população. O telejornalismo serve, por sua vez, como criador de ficções. Contra a pretensa imparcialidade dos fatos, enunciada pelos âncoras, temos uma interpretação conveniente, travestida de única leitura possível, ainda que em visível conflito com a realidade. Para os brasileiros de 2020, imersos em fake news, disputa de narrativas e um presidente compulsivamente mentiroso, o resultado soa tão amargo quanto atual.

Gallo questiona a natureza da imagem enquanto construção do real, ao invés de apreensão do mesmo. O patriotismo é ostensivamente moldado pelas reportagens, assim como o machismo e o belicismo. Em paralelo, a montagem insere a batalha numa perspectiva capitalista tragicômica: enquanto uma jornalista de discurso afetado defende as forças armadas, letreiros na parte inferior da tela listam produtos que os espectadores podem comprar: Colgate, Pepsi-Cola e afins. O editorial torna-se indissociável da publicidade – tanto a guerra quanto o dentifrício se convertem em produtos revestidos de um esforço de marketing. A deliciosa perversidade deste documentário se encontra no fato de não precisar criar nenhuma imagem própria para desmontar a retórica agressiva da mídia corporativa: basta usar as reportagens contra si mesmas. Jogos de futebol, spots de produtos e vídeos institucionais do governo completam este desfile ostensivo de nacionalismo – o que hoje talvez pudesse ser chamado de “doutrinação ideológica”, mas passemos. A televisão, meio de comunicação mais popular entre as eras do rádio e da Internet, soa ao mesmo tempo embriagada pelo poder que possui diante de sua plateia, e falsamente ingênua quando confrontada à responsabilidade pelos atos. No Brasil, não tivemos a Rede Globo apoiando a ditadura militar?

Quanto às Ilhas Malvinas, elas se tornam um espaço imaginário defendido pelos argentinos sem saberem ao certo por que razão deveriam se envolver neste combate. As filmagens daquele espaço se tornam acessórias: os jornalistas perguntam aos moradores locais duas ou três questões restritas, direcionando-os à resposta esperada. Tamanha histeria em torno da honra argentina se torna ainda mais pulsante diante da ascensão das novas extremas-direitas latino-americanas, tão parecidas com os regimes ditatoriais de antigamente. Gallo faz questão de preservar a janela da imagem quadrada, com a moldura típica da televisão, além de preservar “falhas” que nos convidam ao estranhamento – seja as imagens cortadas ou repetidas, a deterioração do material, a velocidade errada da projeção. O projeto nos provoca a efetuar o percurso interpretativo oposto das pessoas da época: enquanto o público conservador do 60 Minutos absorvia cada palavra dos repórteres enquanto pílulas de uma realidade descoberta, o diretor nos pede para dar um passo atrás e observar com ceticismo, lembrando-nos de que aquilo é apenas uma fabricação, um show. Aos olhos de Gallo, a História nacional se torna um espetáculo grosseiro. Por trás da luta gloriosa, centenas de pessoas morreram de ambos os lados, e a ditadura argentina chegou ao fim pouco tempo depois. Acreditando num interlocutor inteligente e ativo, 1982 nos convida a ter senso crítico, duvidar do nosso olhar e das retóricas tão potentes aos discursos de glória e de medo.

Filme visto online no 25º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, em setembro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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