O golpe militar no Brasil completou recentemente 60 anos. É necessário olhar para trás e refletir sobre o que aqueles anos de chumbo representaram para o país. Trata-se de um período a ser lembrado por todos brasileiros. E o cinema nacional tem ajudado de forma relevante a pensarmos, conhecermos ou mesmo acessarmos momentos e pessoas marcantes desse passado duro. Pensando nisso, a equipe do Papo de Cinema se reuniu para elencar as dez produções que melhor capturaram figuras e episódios proeminentes da Ditadura Militar.
Na lista entram filmes de ficção (inclusive um realizado à época do golpe) até documentários que colocam em perspectiva o período. Esses dez títulos formam um intenso e pertinente mosaico do que o período significou para o nosso País, tornando-se um interessante material de estudo e de reflexão. Os escolhidos são:
Eles Não Usam Black-Tie (1981), de Leon Hirszman
Um homem já de certa idade, após um tempo desempregado, consegue um novo trabalho, mas gasta seu adiantamento em bebida. Alcoolizado, é assaltado por um cidadão desesperado, recebendo um tiro pelas costas. Pouco antes de morrer, no entanto, consegue encarar seu assassino e reconhece com olhos incrédulos um colega de classe oprimido. Esta cena resume bem Eles Não Usam Black-Tie, que conta a história de Tião (Carlos Alberto Riccelli), homem dividido entre os movimentos sindicalistas dos trabalhadores e a responsabilidade de uma mulher grávida para sustentar. De um lado há o pai dele, Otávio (Gianfrancesco Guarnieri, que rouba o filme para si), militante pelos direitos dos operários; do outro está Maria (Bete Mendes), a esposa otimista e símbolo de uma vida por vir. Os covardes escapismos – como os do velho bêbado e do ladrão do início do texto – ou a dura e triste realidade? É a decisão que o filme impõe a seu protagonista, enquanto também nos convoca para tomar partido. Afinal, aquele que terminar embriagado tentando se manter cego às brutalidades que certamente ocorreram na ditadura, saberá ao menos qual lado escolheu. Em um papel menor, mas nunca despercebida, Fernanda Montenegro e sua potente voz também está aqui, sempre admiravelmente intensa nessa trama que escancara algumas tensões fermentadas durante os intermináveis anos da ditadura. – por Yuri Correa
Pra Frente Brasil (1982), de Roberto Farias
O cinema às vezes demora para refletir acerca de acontecimentos e/ou períodos históricos relevantes. Em alguns casos é inclusive recomendável dar esse espaço entre os fatos e as suas representações cinematográficas. Noutras a urgência é uma aliada valiosa. No filmaço Pra Frente Brasil, o diretor Roberto Farias toma uma atitude absolutamente corajosa nos ainda muito turbulentos anos 1980: decide fazer um filme que denuncia os militares como os grandes vilões brasileiros desde o golpe de 1964. Isso enquanto o regime ditatorial ainda vigorava no país, em estágio agonizante, mas ainda oficialmente no poder. Na trama, enquanto o Brasil era bombardeado midiaticamente com a cobertura da Copa do Mundo de 1970, as maiores barbaridades eram cometidas nos porões em que militares torturavam os seus opositores. Nesse contexto, Jofre (Reginaldo Faria) é confundindo com um “subversivo” e levado para interrogatório, logo sendo submetido a desumanidades infelizmente análogas àquelas que foram comuns nos anos 1960 e 1970 no Brasil. Seu irmão (Antônio Fagundes) e sua esposa (Natália do Vale) tentam de todas as formas descobrir seu paradeiro, o que os arremessa nos corredores sombrios de um Brasil vendido como ordeiro e guiado pelo progresso, mas que era puro terror longe da vista do público. – por Marcelo Müller
O Que é Isso, Companheiro? (1997), de Bruno Barreto
Um dos marcos da retomada do cinema brasileiro, O Que é isso Companheiro? é muito mais que um dos longas tupiniquins que concorreram ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. A obra de Bruno Barreto, baseada livremente no texto homônimo de Fernando Gabeira, retoma a história do embaixador dos EUA no Brasil, Charles Burke Elbrick (Alan Arkin), sequestrado por militantes guerrilheiros contrários à ditadura que queriam libertar companheiros presos. Além de ser uma produção que não deve nada à Hollywood em seus moldes e técnica e ter um elenco primoroso que conta com atuações inspiradas de Pedro Cardoso, Fernanda Torres, Cláudia Abreu, Matheus Nachtergaele e Luiz Fernando Guimarães, o filme tem como sua maior qualidade o roteiro de Leopoldo Serran. O texto tenta ao máximo não julgar nenhum dos lados da história, mostrando os tons de cinza tanto da juventude comunista quanto do governo ditatorial, sem nunca apontar o dedo para um dos lados. Talvez seja um dos filmes mais humanos a contemplar este período da história do Brasil, mesmo que falhe em diversos momentos e possa até cair no clichê em sua montagem. Ainda assim, é um dos nomes imprescindíveis da atual filmografia do cinema nacional. – por Matheus Bonez
Cabra-Cega (2004), de Toni Venturi
Normalmente, esperamos algo grandioso de filmes sobre a ditadura: conspirações politicas, tiroteios, assaltos, guerrilha e tortura são parte necessária do imaginário relacionado ao período e, portanto, bastante comuns a maioria dos filmes. No entanto, como era a vida de um guerrilheiro no dia a dia? Como essas pessoas, que arriscavam a vida por um ideal, encaravam tarefas banais como tomar café da manhã? É mais ou menos o que Toni Venturi explora em Cabra-Cega, filme que conta os dias de um guerrilheiro escondido no apartamento de um amigo. Vivido por Leonardo Medeiros com força visceral, o personagem por vezes se torna uma metáfora do Brasil acossado por um regime que sequer compreendia. A cena do terraço é uma das mais sensíveis da nossa cinematografia recente e, mais do que relembrar um período conturbado de nossa história, nos faz dar valor ao pouco que conquistamos para o presente. Uma lição que, a julgar pela ressurreição dos movimentos ultra conservadores, muito gente ainda não aprendeu. – por Dimas Tadeu
O Ano Em Que Meus Pais Saíram de Férias (2006), de Cao Hamburger
Contando a história de Mauro (Michel Joelsas), menino que fica desamparado depois que seus pais são obrigados a fugir da repressão da ditadura e o avô que deveria cuidar dele acaba morrendo, O Ano Em Que Meus Pais Saíram de Férias mostra uma visão mais ingênua com relação àqueles anos no Brasil, e, por isso mesmo, se revela tão interessante. Em determinado momento, Mauro fala “O Brasil tá ganhando”, se referindo a Copa do Mundo de 1970, e ainda que no futebol isso fosse mesmo verdade, na realidade as coisas não eram bem assim. É uma cena que sintetiza o filme todo, e até por isso a inocência do protagonista, que se encontra totalmente alheio ao que está acontecendo no país, é algo tocante de se acompanhar ao longo da narrativa, sendo um elemento tratado com sensibilidade pelo talentoso diretor Cao Hamburger. Com a ajuda da fotografia e do design de produção, ele traz um tom melancólico bastante apropriado. Dessa forma, este acaba sendo um retrato triste e até mesmo relevante sobre um período que marcou a história do nosso país. – por Thomas Boeira
Batismo de Sangue (2006), de Helvecio Ratton
“A qual organização política o senhor pertence?”, pergunta o policial. “À Igreja”, responde Tito, personagem de Caio Blat em Batismo de Sangue. Escrito e dirigido por Helvécio Ratton a partir do livro homônimo de Frei Betto, o filme não é apenas um dos mais contundentes relatos sobre a violência durante a ditadura. Ao tratar de um grupo de seminaristas envolvido com a guerrilha Ação Libertadora Nacional, o longa consegue jogar luz sobre o papel da Igreja durante o período militar, muitas vezes acusada de neutra e complacente. Após uma primeira cena dura, a história inicia em flashback. Com a montagem ousada entre idas e vindas, a história se expande e se contrai, transparecendo no ritmo parte da densidade psicológica. Com as direções de arte e fotografia de Adrian Cooper e Lauro Escorel dialogando perfeitamente, o filme ilustra com intensidade o embate da força contra a resiliência da fé, seja espiritual ou ideológica. – por Willian Silveira
Zuzu Angel (2006), de Sergio Rezende
Bonita, bem sucedida na profissão, rica e famosa. Enfim, a protagonista é o retrato de um Brasil que deu certo. Ou não. Afinal, nada disso impediu que Zuleika Angel Jones enfrentasse um calvário similar ao de tantos outros brasileiros que sofreram nas mãos da Ditadura Militar. Nem os melhores contatos, os amigos poderosos ou sua própria relevância internacional a livraram de ver seu filho, Stuart Angel Jones, ser sequestrado e morto pela política de repressão do então Governo dos anos 1970. O diretor Sergio Rezende, acostumado a cinebiografar personagens históricos como Antonio Conselheiro ou o Barão de Mauá, volta-se aqui a uma personalidade mais contemporânea, entregando sabiamente essa responsabilidade a uma competente Patricia Pillar, que oferece o seu melhor como atriz para retratar essa mãe, artista e profissional sob todos os aspectos, nunca esquecendo da imagem que a tornou famosa, nem seu lado íntimo e a dor de uma vida. Daniel de Oliveira, como o jovem vítima do exagero da força militar e que sonhava com um mundo melhor, também compõe um personagem que consegue se manter longe do estereótipo, ao mesmo tempo em que retrata muito bem essa luta que, se hoje parece esquecida, ainda está ali, como brasas adormecidas, prontas para acenderem novamente. – por Robledo Milani
Cidadão Boilesen (2009), de Chaim Litewski
Cidadão Boilesen, dirigido por Chaim Litewski e vencedor do Festival É Tudo Verdade em 2009, é um documentário que agrega mais um capítulo cinematográfico importante a nossa história. O documentário traz informações interessantes – e novas – para quem nunca foi muito a fundo no período. O diretor mostra em seu trabalho que a Ditadura não se manteve no poder sozinha. Não foi apenas um golpe militar, mas também civil. Diversos empresários ajudaram a financiar a máquina do governo, alguns por medo, outros por convicção. E, de acordo com o documentário, Boilesen ajudava por prazer. Através de depoimentos de figuras importantes, Litewski compila um rico material sobre o período, conseguindo ser didático e, ao mesmo tempo, contundente em seus achados. Em uma manobra inteligente, o cineasta pede emprestado do cinema algumas cenas para ilustrar seu documentário. Assistimos a diversos trechos de filmes sobre o período, como Lamarca (1994) e Batismo de Sangue (2006), longas-metragens produzidos depois da retomada, e Pra Frente Brasil (1982), filmado em plena ditadura militar. A condução da história de Cidadão Boilesen se dá sem tropeços, mesmo com o caminhão de informação que o cineasta tem para passar. Um belo documentário, sobre um período nada bonito. – por Rodrigo de Oliveira
A Memória que me Contam (2012), de Lúcia Murat
Em uma listagem que se propõe a falar sobre produções nacionais que resgatam os anos de ditadura militar no país, é praticamente obrigatório citar uma cineasta: Lúcia Murat. Diretora carioca que trabalha tanto com a ficção e o documentário, Lúcia fala com propriedade da ditadura, pois vivenciou esses anos na pele. É através dos seus filmes que ela conta suas memórias e daqueles com quem conviveu. Dentre tantos filmes de sua filmografia é interessante e importante destacar A Memória que me Contam. O filme, estrelado por Simone Spoladore e Irene Ravache (representando o alterego da diretora) traça um paralelo diferente do habitual ao colocar na tela as consequências da ditadura anos depois, nos dias atuais, quando aqueles que lutaram pelo país não só sobreviveram, mas precisam conviver com o peso da época, de algumas de suas atitudes e ainda alguns que preferem esquecer e seguir caminhos diferentes, como se aqueles anos nunca tivessem existido. É a reunião desses tipos diversos, todos grandes amigos, reunidos pela hospitalização de uma companheira da época de luta, que traz à tona não só os anos amargos, mas suas consequências e aqueles que ainda batalham para abrir os arquivos da época. – por Renato Cabral
Ainda Estou Aqui (2024), de Walter Salles
O autoritarismo nunca é uma solução plausível. Anos de chumbo como os 21 nos quais o Brasil foi desgovernado pelos militares que golpearam a nação em 1964 deixam marcas profundas no tecido social e na existência individual de milhares de pessoas. Ainda Estou Aqui, mais recente longa-metragem de Walter Salles, é baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, um dos tantos órfãos da ditadura. Seu pai, o então ex-deputado Rubens Paiva, simplesmente foi levado pelos militares para uma “averiguação” e nunca mais voltou. Tornou-se a partir disso uma ausência dolorosa, a interrogação que lateja por mais tempo do que a notícia da perda, uma vez que a esperança é um bichinho teimoso sempre nos permitindo sonhar. No filme, depois de construir uma harmonia familiar cativante, Walter Salles mostra a luta quixotesca de Eunice (Fernanda Torres) que, não sendo oficialmente viúva, teve de arregaçar as mangas e assumir as rédeas da família enquanto nutria cada vez menos esperanças de que seu marido voltasse dos porões da ditadura. O cineasta aborda o desmantelamento de uma família por conta do autoritarismo desse regime dissimulado, o mesmo que vendia publicamente progresso enquanto regredia ao que de pior há no ser humano para supostamente livrar a nação de subversivos perigosos. – por Marcelo Müller
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