“Em suma, eu reivindico uma diferença de natureza. Uma espécie de incompatibilidade. E se o documentário não chega a interessar o público, não é justamente porque ele solicita um olhar que o espectador não cultiva? Não pratica? Sendo constantemente agredido por uma outra imaginária. Aquele que se alimenta de imagens fictícias não aprende a ler a realidade de uma imagem. E eu imagino que o caçador da pré-história sabia ver nos muros das cavernas o que a maior parte dos visitantes de hoje nem mesmo suspeitam. A leitura de uma imagem é consequência direta do que o leitor carrega em sua bagagem, em seus usos. Cada um cultiva seu olhar como bem entende.”*
Pouco interessa o que é documentário ou o que é ficção. Talvez mais apropriado seja trazer ao jogo a ontologia da metafísica e perguntar quando há documentário e quando há ficção? Se André Bazin criou todo um sistema teórico para satisfazer seu ideal de cinema (filtragem do real, tarefa a cargo da ficção), abrindo mão do documentário e do cinema mudo (“cinema primitivo”, pois as ideias sobre cinema bazinianas eram sobretudo progressistas rumo a uma realidade cada vez mais acessível) para abraçar a fruição total das narrativas ficcionais, Pierre Perrault (1927-1999), documentarista canadense, que foi também poeta e escritor e teórico de bagagem reflexiva de fôlego (escreveu e filmou incansavelmente, quase sempre no calor dos acontecimentos), inverteu a proposição. Só é capaz de lealdade possível a câmera que não se permite fabulosa. A essência da realidade de que falava Bazin é pretendida por Perrault como estrutura da mesma equação, só que jogando para outro lado. Em seus filmes, Perrault construiu quase uma taxonomia estética, desenvolvendo, é importante salientar, a simplicidade como ethos fundador de uma lógica centrada na frontalidade: são pessoas falando, gesticulando, brigando, amando, resistindo, combatendo, cantando, escrevendo, pescando, chorando. Só o documentário pode, segundo Perrault, apresentar a realidade tal como ela é.
Se deixarmos de lado as questões epistemológicas que certamente residem na gênese destes pensamentos essencialistas sobre os gêneros narrativos, ambos são projetos de implicações que transcendem (no sentido de alcançar o limiar, a potência dos desdobramentos factuais até que se rasguem e gritem por sua autonomia) o registro de estúdio: Perrault olhou para o mundo para além da dialética e da industrialização (mecanização, tecnicismo), enquanto Bazin fez a crítica aos sistemas teóricos de montagem, exigindo do cinema que ele seja manipulado o menos possível, ou seja, a montagem fica proibida e reservada aos momentos onde ela é estritamente necessária. Perrault, exatamente através do estiramento da ação dramática, prolongando as sequências de seus filmes até quando os personagens abandonem o ato – ou até mesmo quando não há nada ativamente acontecendo. Ora, Perrault, para além da poética explícita em suas imagens e da poesia implícita na linguagem (ou mesmo em off, como é o caso da série de filmes em que os personagens não são humanos e, portanto, não falam), friccionou e tencionou os movimentos artísticos e políticos (L’Acadie, L’Acadie, 1971) costurando a constituição desses grupos e suas ideias com a interferência de uma sombra.
Todavia, se a questão da linguagem reside na ponta do lápis do poeta e na reprodução das lentes, não é menor seu desejo em descobrir que ela reside lá onde os devoradores da imagem (nós, os canibais) se pretendem conhecedores do mundo: retirados de um estado de encantamento pleno, precisamos aprender a pensar as imagens e a palavras. A questão dissemina-se nos fluxos da linguagem: o cinema, mais especificamente o documentário enquanto gênero, deve exprimir aquilo que de mais íntimo for capaz – os limites atravessam os filmes intensamente, configurando um turbilhão de pulsações, de signos e do subjetivo das experiências humanas (a arte, a política, a filosofia, a carne). O humano é, essencialmente, um corpo a ser descoberto pela câmera, mas não simplesmente como um ente moral, mas sobretudo como um sobrevivente. Perrault destrincha o estado funcional (sem ser funcionalista) do cinema, pois ao invés de prestar contas ao espectador através da descrição dos personagens, ele apenas os filma, rasgando a cortina que separa a existência (real) da representação, a realidade da aparência. A palavra, a linguagem, o corpo. Eis os objetos da práxis de Perrault.
Por outro lado, a lógica do clichê político no registro das relações, em Perrault, não é assim tão evidente, embora não deixe de ser provocada. A câmera esquadrinha os espaços não simplesmente para mostrar como eles são, mas para deixar que se mostrem. Há uma diferença e ela não reside puramente na ordem das palavras. Na iminência da possibilidade de investigar uma relação, a câmera supera sua função de dispositivo e se coloca tal qual um espaço confessional, onde é a vez dos personagens (ou das pessoas?) representarem a si mesmos, com a fraca intervenção da máquina. Em A Besta Luminosa (1982), Perrault não faz mais do que filmar uma temporada de caça, mas que contém implicações sucessivamente delicadas que vão permeando a narrativa – e a narratividade. Os caçadores são partes de suas próprias filosofias, no sentido de que são livres para narrar, para fruir.
Todavia, neste filme exemplar de Perrault, como percebe o espectador, existem momentos que ou são francamente orquestrados (porque não haveriam de ser?) ou atingem tal efeito de representação dramática com força. Esse é o caso da sequência de caça em que alguns homens esperam nervosamente por um animal que está escondido atrás da imensidão da natureza, num estiramento do tempo em que o cineasta não interrompe a durabilidade da ação (todo o acontecimento é capturado pelos aparelhos do cinema). No entanto, quem surge é outro animal, o humano, o amigo. As imagens configuram a torpeza de todo registro de tal modo que torna difícil a separação entre o que é ficção e o que é documentário. Essa é, aliás, uma questão menor em Perrault, uma vez que ele abre mão das narrativas ficcionais, como veremos mais profundamente nas próximas linhas. Compreendendo isso, poderemos absorver melhor inclusive as implicações políticas de seus filmes.
*Pierre Perrault: o real e a palavra (Org. Michel Marie e Juliana Araújo). Balafon.
Este fragmento de texto sobre Pierre Perrault é a primeira parte de uma série de 3 (ou 4) que pretendo publicar semanalmente.
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