Logo após ter dirigido seu primeiro longa de fato – ainda que tenha estreado com As Grandes Aventuras de Pee-Wee (1985), este foi um projeto feito sob encomenda – Tim Burton conquistou uma posição de destaque suficiente para que lhe fosse oferecido o trabalho mais cobiçado em Hollywood no final dos anos 1980: a cadeira de direção de Batman (1989). E, é preciso concordar, a tarefa era um desafio e tanto. Afinal, tratava-se do primeiro filme ‘sério’ do personagem, além de ser um passo importante da Warner e da DC Comics, que finalmente começavam a perceber a importância dessa fonte – as histórias em quadrinhos – como inspiração para obras extremamente lucrativas. O cineasta, no entanto, não só cumpriu o que lhe foi exigido, como ainda encontrou espaço para deixar sua marca no universo cinematográfico.
Se o citado As Grandes Aventuras de Pee-Wee foi ao menos competente e serviu para dar início a uma interessante amizade do diretor com o astro Paul Reubens, o seguinte Os Fantasmas se Divertem (1988) teve como objetivo introduzir o espectador a um universo cômico e sombrio, repleto de humor negro e de uma preocupação visual singular e atraente. No entanto, tinha-se em mãos uma produção de recursos limitados, que fez verdadeiros milagres dentro das escassas condições oferecidas – é um filme de poucos personagens, filmado quase que totalmente em internas, com efeitos especiais que reciclavam técnicas antigas e em ambientes controlados. Com Batman, por outro lado, Tim Burton radicalizou essa mesma estética, firmando-se como um autor também capaz de ser camaleão, atendendo a dois mundos – as exigências das bilheterias e seus ímpetos criativos – de modo eficiente e surpreendente.
Após o sucesso de Superman: O Filme (1978), as duas companhias por trás da produção – Warner e DC – trataram de esgotar todas as possibilidades do primeiro super-herói, levando-o até o esgotamento visto em Superman IV: Em Busca da Paz (1987). Havia chegado o momento, portanto, do passo seguinte. E com a editora rival – Marvel – mal das pernas (ela vivia uma conjectura muito distantes dos dias de glória atuais), restava seguir pelo mesmo universo do último filho de Krypton. Seu sucessor deveria ser, inevitavelmente, o Homem-Morcego, uma aposta tão apropriada quanto arriscada. Afinal, a base de fãs era tão grande – senão maior – que a do azulão. Por outro lado, enquanto um pregava a justiça, a moral e os costumes tradicionais e familiares – um legítimo bom moço, portanto – o outro lidava com as coisas pelas próprias mãos, desrespeitando regras e ignorando conceitos arraigados. Era preciso alguém que respeitasse a gênese do personagem, mas que não provocasse uma quebra de paradigma tão severa. E foi por esse caminho que Burton se guiou.
Batman, o filme, começa deixando claro que nada ali será exatamente como o esperado. Logo na primeira cena acompanhamos um casal, ao lado do filho pequeno, que sai do teatro à noite e segue pelas ruas, sem conseguir um táxi que os leve em segurança. Sem conhecer bem a região, acabam se perdendo, até se verem em um beco escuro e úmido. O assaltante aparece e a ameaça é feita. Qualquer um que tenha o mínimo de conhecimento sobre a origem do herói sabe que assim foram assassinados os pais do garoto, deixando o desamparado Bruce Wayne sozinho no mundo, ao mesmo tempo em que as trevas começam a ocupar seu interior. Não é exatamente o que vemos dessa vez. Se o assalto chega a ocorrer, é sem mortes, e mesmo assim não há um final feliz para os bandidos: Batman está à espreita, do alto, observando e pronto para agir. A cidade é dele, o aviso foi dado, e a partir de agora nada mais será como antes.
A roteiro segue, a partir desta eficiente apresentação, uma estrutura bastante linear, dividida apenas entre os três personagens principais. Bruce Wayne é um milionário recluso que vive da fortuna herdada pelos pais e do desempenho de suas empresas. É o suficiente para ter o melhor da tecnologia ao seu dispor e, com uma fantasia negra, um automóvel blindado e automático e uma base central superequipada, nada lhe é impossível. Vicki Vale é a repórter fotográfica de renome internacional que se muda para Gotham City após ouvir falar do héroi, determinada a conseguir o melhor registro do vigilante. E, por fim, Jack Napier é o capanga que sonha ser chefão, um mafioso lunático com sede pelo poder. O encontro dos três, evidentemente, será bombástico.
As opções do elenco merecem uma atenção especial em Batman. Michael Keaton estava longe de ser a escolha óbvia para o protagonista, e somente seu passado em comum com o diretor – juntos haviam feito Os Fantasmas se Divertem – pode explicar sua presença aqui. Temos a certeza da fidelidade de Burton aos seus intérpretes favoritos – uma constante que ficaria ainda mais evidente no relacionamento que desenvolveria com Johnny Depp nos anos seguintes – e a gratidão de Keaton, que se esforça para ser o herói imaginado. Mas se como Beetlejuice ele estava visivelmente à vontade, dessa vez soa engessado, desconfortável com ou sem a máscara. Sua participação fica ainda mais apagada quando Jack Nicholson entra em cena, esse sim o verdadeiro astro do filme. Como Coringa – apelido que Napier dá a si mesmo após o acidente que o transforma em megavilão – ele oferece um show à parte, ao mesmo tempo cômico e intimidante, perigoso e insano. Seus objetivos são tipicamente cartunescos – quer dominar o mundo, o que mais? – mas os métodos empregados – deixar toda a população da cidade com o mesmo sorriso mortal que lhe coube – e suas motivações – vingança, pura e simples – revelam uma profundidade quase insuspeita para esse tipo de produção.
Kim Basinger é a mocinha da vez, e vê-la em cena é tão agradável aos olhos como perturbador ao cérebro. Atriz de limitados recursos, ela pouco compromete, mas também não oferece nada além do esperado – muito diferente do que Michelle Pfeiffer faria na sequência Batman: O Retorno (1992). Sua função é cortejar o mascarado e servir de refém do inimigo, acrescentando pouco ao duelo estabelecido entre os dois. Mas ela está no meio, como um elo de ligação, e talvez essa seja a melhor das mudanças propostas pelo cineasta: em sua visão, Batman é tão responsável pelo surgimento do Curinga quanto Jack Napier é o culpado pela criação da identidade desenvolvida por Bruce Wayne. Um só existe a partir do outro, identidades secretas ou não. Uma sacada inteligente, que vai além do cenário repetitivo dos gibis e possibilita o estabelecimento de um drama quase shakespeariano.
Tim Burton lançou seu Batman no dia 23 de junho de 1989, mais de duas décadas após o último longa do personagem ter chegado às telas – Batman: O Homem Morcego (1966), com Adam West. Como resultado, mais de US$ 410 milhões arrecadados no mundo todo, o estabelecimento de uma nova franquia (com uma continuação direta e outras duas apenas produzidas pelo diretor) e um Oscar na bagagem, de Melhor Direção de Arte. Mas, antes de qualquer coisa, estava-se estabelecido um estilo único de filmar, a consolidação de um autor cinematográfico preocupado com o jogo dos grandes estúdios e que, ainda assim, sabia exercer sua liberdade criativa. Hoje, vinte e cinco anos depois e outros seis filmes com o herói, este aqui ainda continua sendo absoluto, o único em que apenas um nome – sem adendos, nem explicações – lhe é suficiente. Da mesma forma como um holofote projetado no céu, é um símbolo que segue servindo como farol e exemplo.
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