Na antiga Roma, época de imperadores e déspotas, se dizia que era importante que ao povo fosse dado “circo e pão”, ou seja, diversão e comida. Com a barriga cheia e o cérebro ocupado com atividades vazias, talvez o cidadão comum não prestasse muita atenção às roubalheiras e injustiças praticadas pelos governantes. Guardadas as devidas – e óbvias – proporções, a impressão é que o velho ditado está de novo em voga durante o 40° Festival de Cinema de Gramado. Afinal, estamos num dos principais destinos turísticos do país, com elementos de sobra para distrair o cinéfilo ou mero curioso em busca do bom cinema. Até porque esse está em falta por aqui.
Depois de um ótimo exemplar vindo do Uruguai – Artigas: La Redota, de César Charlone – a habitualmente superior Mostra de Longas Latinos tem decepcionado em 2012. Primeiro foi Diez Veces Venceremos, de Cristian Jure, que parece ter sido selecionado apenas para cumprir duas cotas de uma só vez: a vaga da Argentina e a reservada à obras com temática indígena. Desde que Raoni, de Luiz Carlos Saldanha e Jean-Pierre Dutilleux, ganhou o kikito de Melhor Filme em 1979, todo filme que fale sobre índios tem se dado bem na Serra Gaúcha. Para comprovar essa teoria, basta lembrar de outros casos, como Serras da Desordem (Melhor Filme em 2006), Corumbiara (Melhor Filme em 2009) e As Hiper Mulheres (Prêmio Especial do Júri em 2011). Porém, ao contrário desses, o longa de Jure apresenta uma total escassez de originalidade ou pertinência, pois trata em um formato bastante acadêmico e convencional de um problema muito local – a prisão de um descendente da tribo mapuche, no sul do Chile, por questões políticas e os esforços da sua comunidade para libertá-lo. Cansativo – seus 75 minutos parecem, no mínimo, o dobro – e repetitivo, deve despertar interesse apenas aos diretamente envolvidos. E olhe lá!
Cansaço foi o que provocou também Leontina, de Boris Peters. A sinopse já não é das mais atraentes – um documentário-tributo do realizador para a sua avó – mas a beleza das imagens e a forma poética como Peters filma guarda alguns destaques. Pena que o realizador tenha insistido em transformar em longa-metragem aquilo que deveria ser, no máximo, um curta – o ideal, no entanto, seria um destino como audiovisual abstrato ou um vídeo-arte, mais apropriados para experimentações como a que aqui o realizador se aventura. Quando os 70 minutos de projeção se encerram, a impressão que se tem é de que se passaram horas, e difícil será o espectador que não terá contido um ou outro bocejo.
Mas nem só de tédio vive a festa do cinema em terras gaúchas. Há também circo, e que convidado melhor para isso do que o internacional Cirque du Soleil? A atração, atualmente em cartaz em Porto Alegre, aproveitou a folga da segunda-feira e subiu a serra para uma participação especial no Palácio dos Festivais. Aqueles que esperavam por no mínimo uma performance dos artistas fantasiados se decepcionaram, pois a presença dos palhaços foi algo no estilo Vim – Vi – E Fui! Mal subiram no palco, pelo outro lado já desceram se despedindo. Restou o colorido dos figurinos e uma vontade imensa de quero mais! Da mesma forma foi a entrega do Kikito de Cristal ao cineasta argentino Juan José Campanella, na noite de terça-feira. O diretor, premiado com o Oscar de Filme Estrangeiro pelo excepcional O Segredo dos Seus Olhos (2009), declarou estar emocionado por ser esta sua primeira homenagem pelo conjunto de sua carreira, e não por um filme específico ou outro. Campanella foi simpático e sorridente, feliz por voltar à Gramado dez anos após ter sido premiado com o emocionante O Filho da Noiva (2001). Mas, ocupado até o último minuto com seu atual projeto, a animação Metegol, prevista para o próximo ano, permaneceu no Brasil por menos de 24 horas, voltando correndo para Buenos Aires.
Mas nem só de convidados do exterior se faz o Festival de Cinema de Gramado, um dos mais antigos e importantes de todo o Brasil. Aqui também há espaço para a produção nacional, e neste ano a mostra competitiva brasileira abriu espaço para oito títulos, um recorde se comparado com os últimos anos. Após os irregulares e decepcionantes Eu não faço a menor ideia do que eu tô fazendo com a minha vida, de Matheus Souza, Super Nada, de Rubens Rewald, e Futuro do Pretérito: Tropicalismo Now, de Ninho Moraes e Francisco César Filho, filmes que prometiam mais do que entregavam, foi a vez de duas obras que fizeram o contrário: foram contra as baixas expectativas que haviam gerado.
A mais grata surpresa até o momento atende pelo simples título de Colegas. Com direção de Marcelo Galvão (do equivocado e confuso Bellini e o Demônio, 2008), este filme apresenta uma trama muito próxima ao do belga Hasta la Vista: Venha como você é, de Geoffrey Enthoven e exibido recentemente no Brasil. Se na produção europeia tínhamos três rapazes deficientes – um tetraplégico, um com câncer e outro cego – que decidiam partir, sozinhos, para o litoral da Espanha em busca de uma aventura sexual, a versão verde e amarela mostra três amigos com Síndrome de Down que fogem do instituto onde vivem para irem atrás dos seus maiores desejos: um quer ver o mar, o outro deseja voar e a menina sonha em se casar. Se a emoção é forte, ao menos ela é quebrada por um ritmo cômico constante e uma edição bastante ágil, além de participações especiais de atores conhecidos como Lima Duarte, Marco Luque, Juliana Didone e Leonardo Miggiorin. Muito alegre e divertido, é um filme para grandes públicos. Fica a torcida para que o espectador – e o júri do festival – vença o preconceito inicial e reconheça esse belo trabalho.
A terça-feira abriu espaço em sua programação para a exibição do único longa-metragem gaúcho na competição oficial: Insônia, de Beto Souza. O filme estrelado por Luana Piovani levou mais de 5 anos para ficar pronto, e poucos apostavam em sua relevância. A obra, no entanto, possui qualidades evidentes, e se comunica com eficácia com o seu principal espectador: jovens pré-adolescentes. Bastante colorido, com uma trilha sonora envolvente, interpretações leves e descompromissadas e uma edição muito dinâmica, o resultado apresenta características videoclípicas que devem funcionar nessa comunicação. Não é filme de festival, com mensagens profundas e grandes experimentações estéticas ou de estilo, mas ainda assim se destaca por ter um foco e ir atrás dele sem receios. Ponto para a produção, que reconheceu seus pontos fortes e lutou por eles.
Gramado tem apresentado também, durante as sessões noturnas, os competidores da Mostra Nacional de Curtas-Metragens. Trabalhos intensos ou bem humorados, como o gaúcho Casa Afogada, de Gilson Vargas, o paulista Meta, de Rafael Baliú, e o pernambucano Di Melo: O Imorrível, de Alan Oliveira e Rubens Passaro, se destacaram nestes primeiros dias pela qualidade técnica, criatividade de seus roteiros e aproveitamento dos recursos que tinham disponíveis. Há mais seis concorrentes para serem exibidos, por isso ainda é cedo para falar em favoritos. Mas estes acima citados se qualificam com folga. E entre cerveja, chocolate e pipoca oferecida pelos patrocinadores no saguão do Palácio dos Festivais, micagens de palhaços internacionais no Tapete Vermelho e filmes que ficam só na promessa, o 40° Festival de Gramado vai mostrando, mais uma vez, que nem só de excelência artística se faz um evento como esse. É preciso também arriscar, e como risco nem sempre significa qualidade, é importante antes saber bem as regras do jogo.
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