É difícil fazer cinema no Brasil. Com fraco e inconstante apoio das ferramentas do estado, com pouco retorno do público e isolados por causa do nosso idioma, o qual não dividimos com nenhum dos nossos países vizinhos, para se fazer uma carreira por aqui em frente e, principalmente, atrás das câmeras, é preciso muita dedicação, interesse e, principalmente, paixão. E esse amor abundava em um dos maiores nomes que já tivemos no comando de nossas câmeras: Carlos Reichenbach! Nascido em Porto Alegre no dia 14 de Junho de 1945, ele nos deixou exatos 67 anos depois, em 14 de Junho de 2012. Estabelecido desde muito cedo em São Paulo, foi um dos nomes mais atuantes da Boca do Lixo, tendo atuado em diversos movimentos, da pornochanchada à retomada, sempre ressaltando uma grande generosidade e uma compreensão enorme da sétima arte. Dono de 6 Candangos no Festival de Brasília e 4 Kikitos no Festival de Gramado, foi premiado ainda nos festivais de Recife, Cuiabá e Fortaleza, homenageado em Pesaro (Itália) e Amiens (França), e dono de um troféu no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, o Oscar da produção nacional. Um mestre eterno, que ganha nossa justa homenagem com uma seleção comentada dos seus cinco melhores filmes, mais um que merece ser (re)descoberto. Confira!

 

Filme Demência (1986)
Reichenbach, o mais cinéfilo dos cineastas que o Brasil já teve, sabia equilibrar erudito e popular. Tanto que um de seus filmes mais urbanos é inspirado num clássico do teatro. Ao trazer a história de Fausto, personagem do clássico poema escrito por Goethe, para a São Paulo dos anos 80, Carlão e seu parceiro no roteiro Inácio Araújo, realizam um suspense com ares fantasmagóricos que circula por ruas, bares e prostíbulos, mostrando os mais diversos tipos que constituem os habitantes da metrópole. Tudo isso permeado por referências à geração da Nova Hollywood na fotografia e nos ângulos de câmera. Os desejos de uma vida com mais conforto e as tentações para se atingir este objetivo tornam a noite paulistana o cenário perfeito para Carlão destilar sua poesia nada romântica sobre os dilemas que atingem todos, não importando gênero ou classe social. Os devaneios do protagonista, interpretado por Ênio Gonçalves, estão entre as melhores cenas do longa, assim como a participação do também diretor John Doo e Emílio Di Biasi, no papel de Mefisto. Vencedor de cinco Kikitos no Festival de Gramado. – por Bianca Zasso

 

Anjos do Arrabalde (1987)
Este longa-metragem destaca-se na filmografia de Carlos Reichenbach por diversos motivos. Primeiro: teve carreira internacional, tendo sido exibido, entre outros lugares, no 16ª Festival de Rotterdam, na Holanda. Segundo: venceu três Kikitos no Festival de Gramado, dentre eles Melhor Filme e Melhor Atriz, para Betty Faria (empatada com Marília Pêra, por outro filme com “anjo” no título, Anjos da Noite). Terceiro: com o passar do tempo, foi ganhando ainda maior status como um grande filme, tendo figurado na lista das melhores produções brasileiras segundo a Abraccine. Na trama, acompanhamos a trajetória de quatro mulheres – três delas professoras – que enfrentam o seu cotidiano com as armas que tem. Carmo (Irene Stefânia) sofre nas mãos do marido machista, Rosa (Clarisse Abujamra) está insatisfeita com a profissão e faz um ato terrível em frente aos seus alunos e Dália (Faria), embora seja a mais independente das amigas, é vítima de preconceito por sua bissexualidade. Aninha (Vanessa Alves) é o quarto elemento da história e a violência que sofre repercutirá em todas as outras mulheres. Ótimo filme, com uma pegada realista que conversa bem com as trajetórias das protagonistas, defendidas com intensidade pelas atrizes e muito bem conduzidas por Carlos Reichenbach. – por Rodrigo de Oliveira

 

Alma Corsária (1993)
Neste drama autobiográfico, Carlos Reichenbach projeta na tela um retrato de sua geração. A trama acompanha dois amigos de infância, Rivaldo Torres (Bertrand Duarte) e Teodoro Xavier (Jandir Ferrari), ambos poetas, que lançam um livro juntos numa pastelaria no centro de São Paulo. Os convidados dessa festa literária são de todo tipo: um suicida que estava prestes a pular de do Viaduto do Chá quando foi impedido por Rivaldo, colegas de trabalho, parentes, figuras aleatórias da cidade, alguns velhos amigos, outros velhos amores. A partir do evento na pastelaria, o fragmentado roteiro de Reichenbach divaga, passeando pela trajetória dos dois amigos e, ao lado dos personagens, viaja pelas constantes mudanças no cenário político do Brasil dos anos 60 e 70. Em meio ao caos e à diversidade da cidade de São Paulo, o filme vai tecendo um poético estudo sobre amadurecimento, juventude, cultura, política, amizade e amor, uma análise conduzida com o estilo inconfundível do diretor. Erudito e popular ao mesmo tempo, esta obra é uma viagem pela vida e o relacionamento de dois personagens que, quando o espectador menos espera, mostram-se extremamente cativantes. – por Marina Paulista

 

Garotas do ABC (2004)
Carlos Reichenbach foi um cineasta que sempre olhou para sua volta. Nunca teve medo de ir a fundo nas raízes sociais do Brasil, fosse qualquer viés. Neste título, não poderia ser diferente. Aqui o foco é a região metropolitana de São Paulo, onde acompanhamos o cotidiano de operárias de uma fábrica. Aurélia Schwarzenega (Michele Valle) é o fio condutor da narrativa, que tem desenlaces em seu lado profissional como tecelã, os conflitos com o pai (Antônio Pitanga) e as preocupações com o namorado, envolvido com o neonazismo. Porém, a história não é focada (só) nela. Outras colegas de trabalho também vão se mostrar neste cordel que não julga ou ameniza o sistema brasileiro na sua base. Mas tira sarro. Algo que Reichenbach faz como poucos. É o deboche da vida ordinária dos subúrbios em paralelo com a patética classe emergente que se acha no direito de comandar o que é certo e o que é errado. O cineasta apresenta estas formas, ainda que pareçam desconectadas numa análise mais superficial. Só que, no plano geral, todos fazem parte da mesma engenharia. Não à toa uma fábrica industrial como metáfora neste grande e rico cenário com o melhor que o cinema do diretor pode oferecer. – por Matheus Bonez

 

Falsa Loura (2007)
Neste derradeiro longa como diretor, Carlos Reichenbach explora temas caros ao seu cinema, como o universo feminino e o cotidiano da classe média baixa, concebendo o que definiu como um “musical proletário”. A protagonista dessa mescla de gêneros, que une a fábula à crônica social, é Silmara (Rosanne Mulholland), operária fabril que batalha diariamente para sustentar a si e a seu pai (João Bourbonnais), um ex-presidiário. Em seus momentos de folga, a bela loura ostenta a persona de mulher fatal, com plena ciência e domínio sobre seu poder sexual, saindo para dançar com as amigas e fantasiando aventuras amorosas com seus ídolos: Bruno (Cauã Reymond), vocalista de uma banda pop, e Luís Ronaldo (Maurício Mattar), um cantor romântico. Assumindo o potencial melodramático de sua aura brega, Reichenbach joga com os arquétipos artificiais mais difundidos da dramaturgia popular nacional, das telenovelas, criando um conto de fadas embalado pelas ondas do mar e pela melodia dos videokês, que encontra sua força vital no magnetismo de Mulholland. Transitando entre a determinação e a fragilidade, a atriz encarna uma Cinderela que vê seus sonhos continuamente dilacerados pela realidade, como evidencia o arrebatador plano final fixado em seu rosto, síntese da maestria de seu criador. por Leonardo Ribeiro

 

+1

 

Avanti Popolo (2013)
Por muitos considerado o mais cinéfilo dos cineastas brasileiros, Carlos Reichenbach deixou como herança para seus fiéis admiradores em seu último trabalho uma rara e marcante aparição como ator. Sim, pois além de realizador, fotógrafo, roteirista, compositor, produtor e até diretor de arte, o saudoso Carlão também volta e meia se aventurava em frente às câmeras, mostrando um talento e desenvoltura inegáveis. Sua estreia foi no clássico O Bandido da Luz Vermelha (1968), e entre filmes do Zé do Caixão e Mazzaropi, ele sempre deixou claro ser essa mais uma expressão do grande amor que sentia pela sétima arte. Como o pai do filme de estreia de Michael Wahrmann, ele serviu como reflexo da decadência e do vazio existencial enfrentado pelo protagonista vivido por André Gatti. Na maior parte do tempo, estão apenas os dois em cena, e não se sente falta de mais ninguém! Uma presença tão forte que acabou sendo recompensada com o Candango – o sexto de sua coleção – de Melhor Ator Coadjuvante no Festival de Brasília. Curiosamente, este foi seu único prêmio enquanto intérprete, conquistado após sua morte, mas parte inegável do grande artista que ele foi. – por Robledo Milani

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