Se um dos grandes temas atuais no Brasil é o fim da homofobia e a conquista dos direitos gays, como poderia ficar Gramado de fora de algo tão polêmico e pertinente? Pois foi no sexto dia da programação oficial que o 39° Festival de Cinema de Gramado levantou sua bandeira do arco-íris e deixou em evidência todas as suas cores. Esse “militarismo involuntário” – ou teria sido proposital? – foi provocado pelos dois longas exibidos na mostra competitiva noturna: o uruguaio El Casamiento e o brasileiro Olhe pra mim de novo (abaixo, os realizadores). Os dois são registros documentais: o primeiro sobre a união de um transexual com um homem, ambos muito simples, e o segundo sobre a luta de uma mulher inteligente e muito bem articulada para assumir sua identidade masculina, no meio do sertão nordestino. Duas histórias comoventes, emocionantes, repletas de graça e que provocam profunda reflexão. E ainda responsáveis, aqui na Serra Gaúcha, por incitarem uma discussão mais do que apropriada.
El Casamiento, de Aldo Garay, começa no momento em que o cineasta foi convidado para ser o padrinho de casamento de dois antigos conhecidos: Julia, um transexual, e Ignácio, seu companheiro. Os dois estão em torno dos setenta anos e juntos desde 1995, quando se encontraram numa praça na véspera do Natal. Ambos solitários, simpatizaram um com o outro e decidiram compartilhar aquele período de festas. Desde então, não mais se separaram. O curioso é como se estabelece a relação entre os dois, e a câmera do diretor procura ser o menos intrusa possível dentro de uma situação como essa: os acompanha no dia-a-dia, nas lidas domésticas, nos momentos de carinho e de total companheirismo. Ignácio, o homem do casal, afirma: “não me interessa o que ela fez antes, agora é minha mulher”. Ele não se vê como gay, e nem Julia como um transexual. São marido e esposa. E como tal se comportam. Afinal, o que os une é, acima de tudo, uma afinidade que não se explica – se vivencia. O filme poderia explorar melhor o título, discorrendo sobre questões legais e políticas, mas ao se restringir no cotidiano do casal retratado já oferece uma boa lição de vida e um exemplo a ser seguido. Afinal, o que determina a união de duas pessoas está além de méritos religiosos ou sociais, e sim restrito a um entendimento mútuo.
Já o representante brasileiro é um documentário construído num formato mais clássico. Olhe para mim de novo tem direção do casal Claudia Priscilla e Kiko Goifman. Os dois possuem currículos de respeito. Ela já foi premiada em Berlim (com o curta Sexo e Claustro, 2005) e em Paulínia (com o longa Leite e Ferro, 2011). Ele realizou obras do gênero como 33 (2002) (exibido em Locarno e Roterdã) e FilmeFobia (grande vencedor de Brasília em 2008). E em conjunto partem de um personagem interessantíssimo, o transexual Sillvyo Luccio, para pesquisar e colocar em evidência diversas situações de preconceito e discriminação no nordeste brasileiro. É um road movie pelo sertão tendo como foco a diversidade humana – indo além da questão sexual. No início, entretanto, se dá espaço em demasia para a história de Luccio, relatando como uma mulher decide abandonar família e amigos para se assumir como homem, pois é somente assim que ela se identifica. Sua difícil relação com a mãe e com a filha que deixou para os pais criarem, sua nova família com uma esposa, o comportamento no dia a dia, os tratamentos hormonais, o sexo, o tesão, o romance. Tudo é explorado com bastante propriedade, franqueza e esclarecimento. E essa parte é tão bem feita e envolvente que a quebra para partir para o objetivo original soa brusca e desnecessária. Já se passou mais da metade do filme quando somos levados adiante, confrontando uma família de albinos; uma mulher que descobriu através de um exame de DNA, trinta e três anos depois, que o filho que pensava ser seu fora trocado na maternidade; um casal formado por dois primos e seus filhos, todos portadores da síndrome de barardinelli; e um grupo de adolescentes homossexuais. São histórias de vida igualmente ricas, e percebe-se que cada uma delas, se olhadas individualmente e com atenção, gerariam um outro longa. Mas o foco aqui é Luccio, e a passagem por esses relatos extras, mesmo ricos, termina por enfraquecer o resultado final. De qualquer forma, é algo honesto e comovente, digno dos aplausos em cena aberta que recebeu com entusiasmo.
Por fim, a noite da quarta-feira abriu espaço para a segunda – e última – grande homenagem do festival de 2011: a entrega do Troféu Eduardo Abelin para Domingos de Oliveira. Como ele sofreu um acidente recentemente, fraturando o braço, não pode estar presente. Mas solicitou que o casal Maria do Rosário Caetano e Luiz Zanin (acima), decanos da crítica nacional, recebessem o prêmio em seu nome – Caetano aproveitou o momento para pedir aos patrocinadores maiores investimentos aos projetos do diretor. Depois, uma intervenção repleta de alto astral para aquecer os corações e mentes dos presentes: Domingos agradeceu em vídeo a honraria, afirmando ser ela mais do que merecida! Ele enalteceu, sempre com muito bom humor, sua excelente relação com Gramado – quatro filmes seus receberam kikitos, os longas Amores (1998), Separações (2002), Carreiras (2005) e Juventude (2008) – e o quão feliz estava com esse reconhecimento. Mesmo de longe, desde já o cineasta carioca foi responsável por um dos momentos mais alegres desse ano!
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