Camila nasceu no dia 14 de junho de 1977 na cidade do Rio de Janeiro, RJ, com o sobrenome Manhães Sampaio. Aos seis anos de idade já estava nos sets de filmagens, acompanhando o pai Antonio Pitanga, que participava de Quilombo, de Cacá Diegues. Sua primeira experiência como atriz foi em novelas e seriados, até o convite para Super Colosso (1995), de Luiz Ferré e ao lado de Luana Piovani e Marcelo Serrado. A estreia de verdade, no entanto, levou mais alguns anos: sob o comando do célebre Rogério Sganzerla esteve em O Signo do Caos, um projeto que levou quase uma década para ser lançado. Neste meio tempo vieram mais oito longas-metragens até o seu projeto mais desafiador: Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, seu primeiro drama e também sua primeira protagonista. Por este trabalho já foi premiada como Melhor Atriz no Festival do Rio e no Amazonas Film Festival. E certamente muitos outros virão. Foi sobre esse filme e sobre sua carreira no cinema que conversamos quando Camila, agora Pitanga, esteve em Porto Alegre, no dia 03 de abril de 2012.
Há alguns anos nós conversamos durante as filmagens do Saneamento Básico, longa que fizeste aqui no interior do Rio Grande do Sul com o Jorge Furtado. Estive em Santa Teresa, próximo à Bento Gonçalves, e nos encontramos num dos intervalos. E esse filme, assim como a maior parte da sua filmografia, era uma comédia, um projeto bem mais leve do que Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios. Como foi encarar esse desafio dramático?
Pois então, foi só com o Eu receberia… pronto que me dei conta de que havia feito muita comédia no cinema. Teve o Saneamento, o Bendito Fruto, até o Redentor, que investe bastante no humor negro. A Paraguaçu, do Caramuru, também tinha uma forte veia cômica. E agora estou num outro mundo! Realmente, foi uma pegada muito diferente de tudo que já havia feito na minha carreira. A impressão que tenho é tudo que fiz antes foi um preparo para esse papel. Agora, sim, estou pronta, estou madura para encarar um personagem como esse.
Como foi seu preparo para esse novo filme?
Trabalhei bastante. Precisava estar à altura do que o Beto Brant e o Renato Ciasca (diretores do filme) queriam, para atender as expectativas do Marçal Aquino (autor do livro e do roteiro). Não foi fácil. Tenho o costume de fazer uma pesquisa antes de cada papel, que vai desde banco de imagens, de rostos, de olhos… vejo filmes, leio muito sobre os problemas do personagem. Ela tem uma pluripolaridade, né? O certo seria bipolaridade, mas há umas cinco Lavínias ali, e tive que me inteirar do que é isso, como acontece, o que se passa na mente de quem sofre disso. Tive que estudar a fundo, mesmo. Conversei com psiquiatras, visitei o Pinel, no Rio de Janeiro, onde contei com o grande apoio do psiquiatra Alexandre Martins, que me ajudou bastante a entender todos estes estados de crise da personagem. Ela tem uma dependência, na fase carioca, e não se sabe se era de bebida, de drogas, então tive que definir por minha conta. É a fase trash dela. Gosto disso, é um processo muito interessante que me alimenta também como ser humano. Serve para mim e também para o filme. E tudo partiu do livro do Marçal. A riqueza de detalhes, sobre ela, está tudo ali. Era nossa fonte de consultas regular.
E depois de todo este estudo, como você cria a personagem?
Costumo ir para uma sala, sozinha, e ficar improvisando sobre o que me foi passado no papel. Fico inventando coisas que necessariamente não estarão no filme, só para imaginar como a personagem reagiria. Esse é um trabalho que faço para mim, como pesquisa pessoal. Não é acompanhado pelos diretores, não tem a ver com o roteiro. É um processo que me ajuda a encontrar a personagem dentro de mim. Assim fica mais fácil colocá-la para fora.
O Beto parece ser um cineasta muito tranquilo quanto à improvisações, não?
A gente ensaiou muito antes de filmar. Ali foi o momento de criarmos, improvisarmos, de sugerir coisas novas. Quando chegamos ali eu já sentia como se tivesse um caldeirão de informações esperando para serem divididas, dados que poderia utilizar ou não, mas que estavam ali para me amparar. E o Beto é uma pessoa que gosta, que valoriza muito essa independência, esse lado autoral do artista que está com ele, em todas as instâncias. Está todo mundo ali contribuindo para contar aquela história.
A prostituta é um personagem muito icônico no cinema em geral. Elizabeth Taylor e Jane Fonda ganharam o Oscar interpretando tipos assim. Foi uma responsabilidade a mais encarar essa característica?
Eu não acho que a prostituição seja o âmago do personagem da Lavínia. Essa não é sua principal característica. Ela teve uma passagem pelo universo da prostituição, mas quando a encontramos isso já faz parte do passado. Isso não a define. Claro, é uma profissão muito marginalizada, e ela tem esse caráter mais marginal, de alguém à margem. E é uma mulher que é um vulcão. Sua principal característica é a instabilidade. São muitas mulheres dentro dela. E sem dúvida, é um grande desafio. É tudo o que uma atriz deseja ter em suas mãos, uma personagem que explore estados tão radicais e diferentes, que te dê possibilidades de mostrar uma versatilidade. A Lavínia é a quintessência disso! Você tem a Lavínia missionária, comprometida com um ideal político, tem a que resvala para uma quase casta, santificada de uma certa maneira, tem a Lavínia corpo e desejo, agressiva e louca, febril, tem a apagada…
No livro fica muito claro quando cada uma destas Lavínias aparece. Mas no filme dependia somente de ti, pois era a mesma atriz, do mesmo jeito, que tinha que criar personagens completamente diferentes. E as transformações em ti eram impressionantes, um olhar já dizia muito. Como foi criar todas estas Lavínias e que cuidados eram necessários para não confundir o espectador?
Era preciso muita concentração. Tanto no livro, quanto no roteiro, procurava pontuar, fazer essas divisões. Cada Lavínia era uma, pra mim. Elas estavam bem separadas no meu entender. No Rio de Janeiro existem muitas Lavínias. Já cruzei com várias delas. Então tive que usar minhas referências. São polaridades radicais, mas tudo de uma mesma mulher. O que quis foi compor um caleidoscópio da Lavínia, de todas as possibilidades dela. Não são personagens diferentes. A curva dramática da personagem é muito grande, desde o tempo dela no Rio de Janeiro, nas ruas, até conhecer o pastor, a conversão, quase um exorcismo. Depois deixa tudo aquilo pra trás e vai com ele para Santarém, para o extremo norte do país. Ali começa tudo de novo, até que surge o momento em que a vemos pela primeira vez, quando o fotógrafo a vê, e que é quando ela se apaixona de novo. Nós não sabemos quem é ela, de onde vem e o que quer. Ao ser transposta para o cinema, essa história apresenta uma série de elipses, e na montagem isso fica ainda mais evidente. Na minha pesquisa eu sabia de qual Lavínia estava falando. Cabe agora ao espectador conseguir diferenciá-las.
Com o Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios você ganhou o prêmio de Melhor Atriz nos festivais do Rio e de Amazonas. Como é receber este tipo de reconhecimento?
Comecei no cinema muito jovem, com o Rogério Sganzerla em O Signo do Caos, filme que teve vários problemas e só foi lançado anos depois, quando eu já era conhecida pela televisão. Mas sou apaixonada pelo cinema. Ali nasceu meu amor pela interpretação. Acho que o Eu receberia… coroa uma série de escolhas que tenho tomado na minha carreira há muito tempo. Sempre fui desejosa que meu trabalho pudesse ir mais fundo, investigar o processo todo de criação de cada personagem. Procurei sempre ser muito criteriosa nas minhas escolhas de trabalho. E é por isso que acredito que esse filme caiu como uma luva pra mim. Veio em um momento em que eu estava pronta, aberta para embarcar nessa viagem.
Você literalmente se desnudou, em todos os sentidos…
O grande desnudamento não é nem físico, é mais nessa pegada que tu está falando. O ator tem essa característica de abrir sua alma, de uma doação por inteiro para cada personagem. E a Lavínia não poderia acontecer de uma forma diferente. É um trabalho que me fez passear por terrenos duros, não confortáveis. Sempre tive essa busca por algo que pudesse me oferecer uma entrega mais visceral. Quero ainda buscar mais. A comédia também é um gênero bastante delicado, muito desafiador. Creio que as comédias que fiz foram inteligentes, tinham algo a ser dito. Não eram ligeiras, baratas. Tenho orgulho de ter feito cada um destes filmes. No teatro também fiz muita comédia, mas foram textos artísticos, comedia dell’arte, algo mais rebuscado, elaborado. Seja uma paródia, um melodrama, tem que ter uma pesquisa de linguagem.
Quando entrevistei o Beto Brant, ele me disse que o Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios era uma filme que buscava um público maior, mais amplo, principalmente porque tinha a Camila Pitanga como protagonista. Como é ter este tipo de responsabilidade?
A responsabilidade vem do desafio que eu tinha com a personagem. E vem também do respeito enorme que tenho pela trajetória artística do Beto. Não sei até que ponto ele realmente conhecia o meu trabalho, então ter conquistado a confiança dele, o respeito dele, pra mim tem um valor muito grande. Acho que ele queria me conhecer, tinha essa vontade de comunicar mais, mas acho também que ele queria uma atriz para encarar esse personagem, que pudesse fazer esse papel. Então pra mim é uma conquista! Me deixou ainda mais entusiasmada para me dedicar mais, fazer esses mergulhos mais profundos, sair da área de conforto. Quero crescer no meu trabalho, tenho esse desejo de poder me investigar cada vez mais. E não só no drama, na comédia também. Quero explorar todas as minhas capacidades.
Qual tua opinião sobre o atual cenário do cinema nacional?
Não entendo muito de questões de mercado, quais filmes estão bem e quais estão mal de público e nem os porquês disso. Mas o que vejo é uma pluralidade fantástica de histórias, de atores, de profissionais. Gerações completamente diferentes estão colocando seus filmes na praça. E é muito bacana também para que a gente pense a respeito de nós mesmos, o que pensamos sobre nossa cultura, nossos problemas, nossas virtudes.
Teu último filme, antes do Eu receberia… foi o Saneamento Básico, há cinco anos. Daqui pra frente teremos que esperar tanto tempo assim para te ver novamente na tela grande?
Não, espero que não! Nem sei explicar porque fiquei tanto tempo afastada. Talvez estivesse mais dedicada ao teatro, à televisão. Mas não foi pensado, uma estratégia de carreira, nada disso. Quero muito fazer cinema. Essa experiência que tive com o Eu receberia… foi muito bonita e quero conhecer mais pessoas, me aprofundar mais no meio. Sou filha de um ator de cinema, e nosso sobrenome, Pitanga, é um nome muito ligado ao cinema. Sempre foi. E quero honrar esse sobrenome, esse histórico.
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