Louise Cardoso é um dos grandes nomes do audiovisual brasileiro. Vencedora de dois candangos de Melhor Atriz no Festival de Brasília, possui quase uma centena de créditos no cinema e na televisão, além de diversos projetos de imenso sucesso também no teatro. Sua presença, no entanto, ficou marcada pelas constantes participações em novelas, minisséries e projetos especiais exibidos pela Rede Globo, empresa com a qual manteve um contrato por cerca de quatro décadas. “Mas agora estou livre, pronta para novos desafios”, comentou ela no bate-papo que tivemos logo após a primeira exibição do seu mais recente trabalho, o multipremiado Tia Virgínia (2023), que entre outros reconhecimentos lhe rendeu o troféu de Melhor Atriz Coadjuvante no Festival de Cinema Brasileiro de Los Angeles (LABRFF), nos Estados Unidos. Foi sobre esse reencontro com a sala escura, sua relação muito pragmática com a arte e o que a move enquanto artista que ela discorreu nessa entrevista inédita e exclusiva, que você confere a seguir:
Olá, Louise. De uns tempos para cá, você tem sido uma presença constante na tela grande. Como tem sido esse momento de cinema na sua vida?
É que saí de um contrato longo com a Globo. Cinema é a minha paixão, assim como o teatro. Claro, gosto de fazer novelas, televisão. Mas o cinema sempre esteve em primeiro lugar para mim. Quando fiz as contas e percebi que já estava há quarenta anos na Rede Globo, vi que era hora de fazer coisas novas. E saí de lá numa ótima, em comum acordo, com portas abertas para, eventualmente, voltar e fazer obras específicas. Só não queria mais aquele compromisso de ficar à disposição. Desde então, felizmente, tem sido um filme atrás do outro.
Uma participação muito bonita que você fez recentemente foi em 45 do Segundo Tempo (2022).
Quando o Luiz Villaça, diretor do 45 do Segundo Tempo, me chamou, me disse: “só pode ser você, escrevi esse personagem pensando em você”. Era uma participação pequena, de apenas uma diária, mas o papel era ótimo. Não tinha como dizer ‘não’. Conversamos, me deu algumas referências excelentes, e fui assistir a esses filmes que me recomendou. Os ensaios foram divertidos. Afinal, somos todos amigos. O Tony Ramos, o Ary França, o Cassio Gabus Mendes já foi até meu par em novelas! Adoro os três. Mas foi nesse momento que percebi o quão difícil seria essa personagem. “Me meti numa roubada”, pensei. Porque o nível do jogo era muito alto. Tanto que fiquei nervosa no dia, mas consegui segurar. O bom é que comigo isso acontece antes. Não dormi na noite anterior, mas, na hora das gravações, estava tudo controlado. E tem, também, mérito do Villaça. Ele é tranquilíssimo no set. Alto astral do início ao fim. O curioso é que esse filme é uma comédia, mas a minha personagem é muito dramática. Adoro esse contraste.
Há um ciclo se fechando com o teu envolvimento com o Tia Virgínia (2023). Afinal, uma das produtoras é a Janaína Diniz Guerra, e você viveu a Leila Diniz no cinema, mãe dela, no filme de 1987 dirigido pelo Luiz Carlos Lacerda.
Foi a Janaína que me convidou para estar no Tia Virgínia. Quando me ligou, não acreditei. Não cheguei a dizer na hora, mas pensei: “vou topar sem nem ler”. Claro que não ia fazer isso, pois sou super exigente, mas queria muito trabalhar com a Janaína. E tem uma coisa engraçada nisso tudo. Na época do Leila Diniz (1987), ela não queria dar autorização para que o filme fosse feito. Quando recusou, o Bigode, nosso diretor maravilhoso, me pediu ajuda para convencê-la. Entrei em contato com ela, era só uma adolescente, e a convidei para ir assistir à minha peça, De Noite Com Uma Luz (1984), uma direção minha, que fiz no Tablado, e ela amou! Depois da peça saímos juntas, e fomos nos aproximando. Nem cheguei a falar sobre a Leila Diniz na ocasião. Nunca conversei isso com ela. Mas o resultado foi que acabou autorizando, e deu tudo certo.
Vamos falar agora da Valquíria, a irmã da Virgínia. Quem é essa mulher e como foi entrar nessa pele?
Quando recebi o convite, só me disse que eram três irmãs, e eu seria uma delas. Mas só enrolava, não me dava mais detalhes. E, ansiosa como sou, insisti: “ok, sou a irmã mais velha?”. Foi quando me olharam sério e disseram: “não, você será a mais nova”. Levei um susto, e tudo que disse foi: “puxa, esse filme vai ser jurássico” (risos). Estava debochando de mim mesma. Só que a Janaína achou aquilo engraçado, e foi contar para a Arlete, que ficou indignada! E isso que já tinha feito a irmã dela na novela Porto dos Milagres (2001). Claro que tava brincando! E foi incrível esse reencontro. Um roteiro estrelado por três mulheres mais velhas? Isso não acontece a toda hora. Adorei o que li, e fiquei encantada pela Valquíria. Sabe, fiz personagens no lugar da Virgínia. Na peça O Beijo da Louca (1981), aquela era a Virgínia. Na televisão também, no especial As Pessoas da Sala de Jantar, baseado no texto do Guarnieri. Então, foi ótimo fazer algo diferente.
O que te atraiu nessa personagem?
A primeira coisa que pensei foi: “não tenho nada a ver com a Valquíria”. Justamente por isso, quis fazê-la. Não me interessa fazer eu. Não quero dizer, também, que a Vera Holtz é a Virgínia – ela não é! Mas gostei da Valquíria. Foi bom ter enfrentado esse desafio.
Na hora do convite te disseram quem seriam as outras irmãs?
O Fábio Meira, nosso diretor, é que me confidenciou: fui a primeira a ser escolhida. Mas fui a última a ser convidada (risos). Então, na hora que me chamaram, é claro que perguntei: “quem vai fazer a Virgínia e a Vanda?”. E me disseram: “Vera e Arlete”. Ouvir aquilo foi maravilhoso. Mas, que fique claro: sempre escolho os meus trabalhos pelo roteiro.
Você tinha visto o filme anterior do Fábio Meira, o As Duas Irenes (2017)?
Sim, tinha visto, alguns anos atrás. Depois desse convite, fui rever. Tinha visto no cinema, ainda mais cinema brasileiro, vou sempre que posso. Você sabe, adoro brincar, e acabei fazendo uma piada com o Fábio: “gostei tanto do roteiro do Tia Virgínia que vou comprar os direitos para fazer uma peça”. Ele levou um susto: “você acha que tem muito texto?”. E eu, sem piscar: “acho”. (risos) Tanto que cortamos muito do roteiro original durante as filmagens. Ele chegava na gente e perguntava: “o que você acha que dá pra sair dessa cena?”. E íamos limpando. Eu tirava das minhas falas – claro, não vou dar pitaco nos diálogos das minhas colegas – e ele mexia no resto. Trocamos muito, o tempo todo. O que o Fábio me chamar pra fazer, estarei lá.
Vamos falar dessas três irmãs. Elas são a cara do Brasil? Essa família tem salvação?
É uma família nelsonrodrigueneana, né? Que é a cara do Brasil. E tem salvação, claro, pois elas se amam. E brigam. Quem ama, briga. Quem não ama, é indiferente. Tem um pouco a ver com a minha própria família – ela é menos neurótica, mais simples, mas todas as famílias são meio malucas. Vou contar uma peculiaridade: na cena que estão fazendo o arroz com passas e elas brigam, a Virgínia dá um tapa na cara da Vanda, e a Valquíria começa a xingar. Foi quando machuquei o joelho. Tinha que puxar a Vera, e na hora o meu joelho deu um estalo. Resultado: não pude mais andar. Foi a única cena que não teve como refazer. Pois o Fábio gosta de repetir, é o processo dele. A gente estava acostumada a fazer oito, dez, dezesseis takes. Eu e a Vera, de boa. A Arlete, que faz mais televisão, achava que não havia tanta necessidade. Mas entrou no jogo. Só sei que, nesse dia, tive que sair carregada, de cadeira de rodas, me levaram num hospital, fiz todos os exames e não deu nada. Levei algumas semanas até me recuperar, mas voltei e terminamos.
Em quais pontos você percebe essa conexão entre a ficção e a tua família?
Durante esse período que fiquei afastada, voltei para o Rio de Janeiro, fiz algumas sessões de acupuntura. E aproveitei, também, para retomar a minha terapia. Numa das nossas conversas, a terapeuta me disse: “você não aguentou, isso que está vivendo no filme acabou levando para a tua relação com o teu irmão. Foi por isso que teu joelho estourou”. Será? É bem provável que tivesse razão. No começo, a gente busca respostas imediatas. Afinal, a Vera é mais forte do que eu, e como tinha que puxá-la, acabei fazendo força. Achava que era só isso. “Eu te interno, Virgínia”, e na hora de puxar, ela fincou o pé e eu travei. Como era um plano sequência, segui até o fim. Foi a continuísta que falou pro Fábio: “a Louise se machucou”. Ele desconfiou: “ué, mas tá andando normal”. E ela observou: “não, está andando diferente”. Depois que ele disse “corta”, não consegui mais me mexer.
Como foi o trabalho com o diretor Fábio Meira?
O melhor de trabalhar com o Fábio é que ele dá muito espaço para o ator. E troca muito, está o tempo todo querendo saber a nossa opinião. “O que você acha disso, o que acha daquilo?”, e assim por diante. A Vera fazia uma brincadeira que resume bem a nossa relação: ela o chamava de “nosso diretor / vidente”. Pois tinha um olhar fora dali, que deve ser das memórias, dessas tias, que vem de quantos anos está envolvido com esse filme. Vinha de algum lugar que a gente entendia, mesmo que num nível inconsciente. Como faço análise junguiana, trabalho muito com o inconsciente. Ficava fácil decifrar, mas tanto a Vera quanto a Arlete também entendiam. Magicamente, tudo ia se juntando como num quebra-cabeças. O pior foi quando me machuquei, mas foi no segundo take, então havia já um de segurança. Antes mesmo do início das filmagens, o Fábio me avisou: “Louise, olha só, eu repito muito”. E pra mim tava tudo bem. Sem problema. Da mesma forma, trabalhei diversas vezes com o Daniel Filho, por exemplo, que é alguém que faz tudo de primeira. Cada um é do seu jeito. O importante é respeitar esses processos.
Há cineastas que ficaram famosos pelas repetições, como Stanley Kubrick, e também os que se tornaram conhecidos por serem práticos e diretos, como Woody Allen ou Clint Eastwood.
Julio Bressane é outro que faz tudo de primeira. Guel Arraes é um que gosta de ensaiar bastante, mas quando liga as câmeras, é um, dois takes no máximo. Já o Fábio Meira gosta de repetir, para ter opções. Anna Muylaert, com quem fiz há pouco O Clube das Mulheres de Negócios, também tem o estilo dela. Ao ator, cabe se adaptar.
Tia Virgínia teve sua primeira exibição no Festival de Gramado, onde foi consagrado com diversos kikitos. Você estava lá. Como foi essa experiência?
Foi minha terceira vez em Gramado. Estive antes com O Sonho Não Acabou (1982), quarenta anos atrás, e depois com Sonhos de Menina Moça (1988). Esse último, dirigido pela Tereza Trautman, foi vaiado após sua exibição. Então, é sempre uma expectativa. A gente nunca sabe o que vai acontecer. E com o Tia Virgínia foi estreia para todos nós, pois o Fábio não passou o link do filme para ninguém! Ele queria que a gente sentisse a mesma coisa que o público, que visse pela primeira vez na tela grande. Lembro que fiquei muito nervosa. Sentei do lado da Vera, que percebeu, e disse: “fica tranquila, vai ser ótimo”. E assim foi, logo nos minutos iniciais da projeção já estava achando incrível. O banho da mãe, que é bem no começo, achei fortíssimo. Mas logo em seguida, eu e Vera estávamos às gargalhadas.
Assim como o cinema inteiro.
Exatamente. Pois aquelas irmãs só dizem absurdos. Fiquei emocionada, mas não chorei. Quem sabe quando assistir ao filme de novo? O problema é que a Vera é muito debochada, ria de tudo, e aquilo me contaminou. Achei muito engraçado. Nós três, em Friburgo, onde filmamos, viramos irmãs. A sintonia entre nós ficou forte. E isso está na tela. Me impressionou como o público mais jovem também embarcou na história. Muitos vieram falar comigo ao término da sessão, e aquilo me deixou surpresa. Uma juventude que me conhece da TV Pirata (1988), mas não por terem visto na televisão, mas pelo que está na internet, no YouTube. Aquilo me deixou de queixo caído.
Entrevista feita em Gramado em agosto de 2023
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