Daniel Nolasco não é um novato, vide a estrada percorrida com a realização de curtas-metragens, tais como Plutão (2015), Tatame (2016), Netuno (2017) e Sr. Raposo (2018). Essa experiência, no entanto, não o isenta do frio na barriga pelo lançamento de seu primeiro longa-metragem, o documentário Paulistas (2018), focado na iminência da extinção da tradição campesina, ocasionada pela evasão de jovens que buscam melhores oportunidades nos centros urbanos. Esse universo é muito próximo de Daniel, pois ele nasceu na região do Paulistas, interior de Goiás. Encontramos o cineasta goiano no Rio de Janeiro, onde está radicado atualmente. Ele se dispôs, gentilmente, a ter este Papo de Cinema sobre o filme que chega às telas brasileiras nesta quinta-feira, 22, através da Sessão Vitrine Petrobrás, o que significa ampla distribuição e ingressos mais baratos. Confira a conversa exclusiva com Daniel Nolasco.

 

 

Este é seu primeiro longa-metragem, com uma temática diferente da dos curtas-metragens que você vinha fazendo. Do ponto de vista emocional, o que o levou a Paulistas?
Nasci no Paulistas, onde fiquei até os dois anos. Passei boa parte da infância lá, já que, no mínimo, nas férias escolares voltava para visitar os parentes. Acompanhei essa mudança das pessoas do Paulistas e de Soledade, duas regiões vizinhas, a Catalão, cidade próxima, para onde todo mundo ia. Em 2010 houve a construção da hidrelétrica Serra do Facão, que represou o rio São Marcos. Foi um evento muito marcante. Entre outras coisas, acarretou uma série de problemas ambientais. Ali já havia a questão do agronegócio, do desmatamento do cerrado, então, basicamente, a vegetação resistente era a da beira do rio. Aí o Rio ficou embaixo d’água. Já viu, né? Houve um grande prejuízo ecológico. A ponte que cruzava o rio São Marcos foi construída por parentes meus. Outra coisa que também ficou embaixo da água. A partir daí começou minha vontade de entender um pouco como isso transformava a região. Começamos a pesquisa em 2013. Fazia uns 10 anos que eu não ia ao Paulistas. Nesse retorno constatei que não havia mais jovens morando lá. Percebi que a comunidade estava fadada a desaparecer.

Cena do curta-metragem “Sr. Raposo”

Como foi voltar para a sua região e documentar essa extinção gradativa de uma tradição, de um modo de vida?
No princípio, achei que o fato de ser ligado ao lugar, às pessoas do filme, que são minhas parentes ou conhecidas, seria um problema. Durante as filmagens, contudo, tive uma conversa com a Cristina, a personagem que assiste à televisão, e ela me disse que só aceitou fazer parte do projeto justamente porque eu estava filmando, ou seja, alguém que a conhecia. Comecei a perceber que essa ligação com eles trouxe uma facilidade. Então, a coisa que eu acreditava ser um entrave, por não me permitir certo distanciamento, acabou sendo algo muito favorável. A casa que o Rafael visita, a que tem os morcegos, é recém-abandonada. Foi a casa em que nasci. De todas as cenas que gravamos, essa é a que talvez teve maior impacto emocional em mim. Ela representa uma perda de memória recente. Por isso, foi a que mais mexeu comigo, emocionalmente falando.

 

No Paulistas, há diferenças de abordagem, dependendo da localização da câmera. Em externas, há imagens mais belas. Já nas internas, o dispositivo é mais testemunhal. Por que isso?
Isso diz bastante respeito a como são as divisórias das casas. Os cômodos são muito pequenos, portanto sempre tínhamos de ficar do lado de fora. A câmera está olhando de outro cômodo. Sobre a questão da beleza nas externas, é algo que eu conversava muito com o Larry Sullivan, fotógrafo goiano. O cinema de Goiás tem uma produção consistente de curtas-metragens, mas no que diz respeito aos longas-metragens agora é que está retomando. Nós pensamos em como seria goianos encarando essas paisagens pouco registradas. Filmamos em julho, quase o mês mais seco do ano. Ressaltamos uma contradição, porque o cerrado é muito bonito, o pôr do sol do cerrado é extremamente bonito, mas, ao mesmo tempo, ele é muito seco e áspero. No ano em que filmamos, 2016, boa parte da safra dos moradores foi perdida. Então tínhamos aquelas plantações gigantescas de milho, secas. Se pegasse fogo, só pararia quando acabasse tudo. Propositalmente balanceamos a aspereza e a beleza. Isso gerou esses planos mais elaborados. Decidimos nunca filmar somente paisagens, mas paisagens e personagens. Queríamos entender como aquelas pessoas transitavam por esses cenários.

 

Sobressai certo hibridismo, fruto dos procedimentos documentais e ficcionais adotados. Como foi construir essa narrativa?
Desde o princípio, definimos que não utilizaríamos narrador e tampouco faríamos entrevistas. Durante a pesquisa, chegamos à conclusão de que não iríamos propor discussões. Todavia, havia várias questões importantes, como a barragem e a falta de jovens. Considerávamos isso importante, mas tínhamos abandonado os procedimentos que nos ajudariam a transmitir essas informações. Então, como fazer? Nossa saída foi optar por algo mais poético. Trabalhamos o som, aproveitamos a reportagem da emissora de televisão, por exemplo. Em nenhum momento queríamos informar. Entendo a importância do documentário que se vale dessa narrativa informativa, mas não era essa a proposta do Paulistas. A respeito das encenações, não chegamos a propor algo. O que houve foi a reprodução de coisas que eles normalmente faziam, como naquela cena do Rafael subindo o morro para falar com a namorada. Talvez essa seja a cena mais de ficção, por conta da decupagem, da escala de planos. Mas, não criamos situações, só aproveitamos as já existentes.

Cena de “Paulistas”

De onde surgiu a ideia de fazer as cenas dos personagens alvejando a televisão, que servem para apresentá-los?
Foi obra do acaso (risos). Na região, a caça é uma coisa muito forte, a cultura da arma. Toda casa tem a sua arma. Antigamente, aquela era uma região de muitos animais, então a arma servia, inclusive, para proteção contra eles. Sobre a televisão, lá o sinal mudou, do analógico para o digital. Portanto a TV de tubo foi substituída. Aquela TV estava do lado de fora de uma casa, o tempo inteiro, inclusive em alguns planos ela aparece. Resolvemos filmar os homens praticando tiro na televisão e eu achava que nenhum dos tiros tinha pegado. Quando acabou a filmagem, vi que todos os tiros tinham acertado o alvo. A televisão estava destroçada (risos). Na montagem, percebemos que havia muita relação deles com a tecnologia. Todos se apropriavam da modernidade e, de certa forma, a modernidade era o o motivo pelo qual aquela localidade estava acabando. Então, isso da televisão se tornou muito simbólico.

 

O Paulistas dialoga com outros filmes que também falam dessa extinção da vida campesina, tais como o Rifle, do Davi Preto, e o curta-metragem Sesmaria, da Gabriela Richter Lamas. O que você acha dessa impossibilidade de uma vida rural?
Pensando na região do Paulistas, os jovens seguiam, mais ou menos, uma trajetória. Até o colegial, ficavam por lá, pois estudavam no município vizinho. Chegada a idade da faculdade, iam embora. Catalão, cidade próxima, é rica e universitária. Então, realmente há a tradição dos filhos ingressarem num curso superior, mesmos os oriundos das zonas rurais, especialmente de dez anos para cá, justamente essa geração dos personagens do filme. Engraçado, porque os jovens não permanecem no Paulistas e em Soledade, e quase todas as pessoas que moram nessas áreas já tentaram viver fora, mas não se adaptaram aos centros urbanos.

Cena de “Paulistas”

Como você imagina que será a relação do publico com o Paulistas?
Já exibimos o filme algumas vezes em Goiás e percebemos uma identificação muito grande, principalmente por causa do sotaque, apesar de ser um filme não tão fácil assim para o público médio, exatamente por não fazer concessões. Diferentemente de projetos que apostam num apelo universal, buscamos nossas raízes, fazendo referência ao nosso estado, à nossa região. Espero que isso gere certa empatia no público goiano. No resto do país, sobretudo nos centros urbanos, confesso que não sei como será a recepção. Tenho dúvidas de como o público vai se relacionar com o filme. Não sei se vão achar ele muito abstrato ou se vão se identificar com alguma coisa ali. Entretanto, pensando melhor, o êxodo e como isso acaba prejudicando algumas regiões, além dessa questão dos filhos saírem de casa, tem certo apelo universal. Mas confesso que estou na expectativa.

 

(Entrevista concedida ao vivo, no Rio de Janeiro, em fevereiro de 2018)

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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