O cineasta paulista Beto Brant, nascido em Jundiaí em 1964, estreou como realizador de longas-metragens no final do século passado com um trabalho de altíssima qualidade: Os Matadores, de 1997, premiado nos festivais de Gramado, Recife e de Miami, entre outros. O filme revelou outros talentos, como o ator Murilo Benício e o escritor e roteirista Marçal Aquino. Foi ao lado deste último, no entanto, que Brant construiu sua carreira, sempre levando obras literárias escritas pelo amigo para a tela grande ou contando com ele para adaptar livros de outros autores. E a proximidade entre eles é tão forte que Beto Brant chegou a realizar dois filmes a partir de um único livro de Marçal Aquino! Lançado primeiro como série de televisão, O Amor segundo B. Schianberg chegou ao cinema aproveitando uma ideia descartada pelo próprio Aquino, mas que serve de suporte para o posterior Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, um trabalho mais “convencional”, digamos. Os dois filmes estão chegando aos cinemas em 2012 e se complementam. E foi sobre eles, sobre sua carreira e sobre o atual estado do cinema nacional que conversamos nesse bate papo exclusivo!
O filme O Amor segundo B. Schianberg poderia ser visto como uma radicalização da proposta já explorada em Cão sem Dono, do casal dentro de um apartamento discutindo sua relação?
Antes de mais nada, é preciso explicar de onde surgiu esse filme. A TV Cultura me chamou para participar um projeto de teledramaturgia chamado “Direções”. Seriam quatro episódios de uma mesma história, sempre aos domingos às 22h. Eu não quis fazer cinema na tevê, e sim algo que dialogasse com a linguagem televisiva. Então é uma experiência que surgiu de um pressuposto que já estava no livro do Marçal Aquino, o Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios. É o mesmo livro que agora estou também levando para o cinema. Quando essa história ainda era um projeto, o Marçal dividiu comigo uma trama paralela sobre o Benjamin Schianberg, que está na última versão do livro, só que antes era muito mais elaborada. Na edição final ele deixou isso de fora, só que eu já havia lido, e resolvi aproveitar. Então, peguei aquele argumento sobre a vida pregressa do fotógrafo – que é o protagonista do Eu receberia… – e construí esse outro filme. Antes dele ir para o Pará, ele se envolveu nesse projeto experimental desenvolvido por um psicólogo chamado Benjamin Schianberg junto com sua própria filha. A proposta era fazer uma observação do comportamento amoroso. Só que isso tudo sem ele saber! O fotógrafo passa a viver com essa menina, sempre dentro desse apartamento, mas desconhecendo o fato de que estava cercado por câmeras que registravam todos os movimentos dos dois. Essa era a trama que o Marçal havia deixado de lado, só que decidi retomá-la e a utilizei como ponto de partida. Foi o que eu disse para a TV Cultura: “não tenho teledramaturgia, e sim uma experiência a ser feita”.
Então o Benjamin Schianberg, em última instância, era tu mesmo?
Pois então! Durante três semanas eu acompanhei o desenvolvimento de um relacionamento amoroso de um casal dentro de um apartamento. Não havia roteiro. Nós tínhamos oito câmeras de vigilância espalhadas pelo apartamento, e eu via tudo aqui de um apartamento ao lado, com uma mesa de corte, selecionando o que me interessava ou não. Os dois atores não tiveram nenhum contato com a equipe. Eles eram dirigidos por mim por torpedos, mensagens de texto, por e-mails, telefonemas… eram intervenções eventuais que eu fazia.
Foi muito difícil selecionar um casal protagonista que topasse essa proposta?
O Gustavo é um grande ator. E a Marina Previato não é atriz, ela é uma videoartista. O meu desafio com eles era fazer um anti-Big Brother, um reality show às avessas. Não havia prêmio no final, um não devia ludibriar o outro. Eles estavam ali para somar as vivências de cada um, da área da atuação e das artes. O meu único pedido para eles é que no final ela construísse um vídeo, uma vídeo-arte, tendo ele como ator. Que é o vídeo que encerra o filme, uma produção dela com ele como protagonista. Sem influência alguma minha. Somente na versão de cinema, que precisei fazer alguns cortes para poder entrar na duração do filme. Mas na televisão foi na íntegra. Na tevê foram quatro episódios de 40 minutos cada, mas a versão de cinema tem menos de noventa minutos.
Mas como um projeto de televisão se tornou um longa para o cinema?
Esse era o contrato que eu tinha com a TV Cultura, que depois eu poderia aproveitar todo aquele material captado para a edição de um filme. Já estava acertado desde o princípio. É um filme de lançamento muito pequeno, muito limitado. Foi exibido em poucas cidades, e não há cópia em película, somente digital. A captação é muito crua, houve um tratamento posterior, mas esse também foi limitado.
Quais a facilidades e dificuldades de se trabalhar nesse formato?
Primeiro, foi algo fantástico, pois nunca havia trabalhado com televisão antes. E foi muito bacana não entrar no set, me assumir como diretor de televisão. Eu só entrava no apartamento deles quando os atores não estavam mais. Eles não ficaram confinados, então em cada intervalo, quando eles saíam, eu entrava para mexer numa câmera, num objeto. A tortura não era física, como num reality show convencional, e sim mais psicológica, que vinha da exposição. As patologias do ser humano só surgiam a partir da convivência dos dois atores, e é isso que torna o filme interessante. Daí vem o conflito.
Os atores sabiam que aquele trabalho passaria primeiro na televisão, e depois no cinema? Como lidou com questões mais tensas, como a nudez?
Eu fiz o que sempre faço: quando estava com tudo pronto, chamei os atores e mostrei para eles, para ver se aprovavam. Não quero sacanear ninguém. Quero que fiquem satisfeitos com o resultado, que fiquem felizes, assim como eu estava. Queria que tivessem com orgulho do que fizeram, assim como eu. E em casos como a nudez, por exemplo, queria que tivessem certeza de que estaria enquadrando legal, com uma boa fotografia, tendo todos os cuidados exigidos. Sabendo que nada iria para o ar sem o consentimento deles. E os atores são pessoas jovens, bonitas, muito bem resolvidas… eles não tem esse problema com o corpo, com essa moral. Foi tudo muito tranquilo.
Mas nas tuas indicações, tu os orientava no sentido de “faça isso, faça aquilo… tira a roupa, beija ela…”, algo neste estilo, ou era tudo tão livre que eles mesmos chegavam a esquecer das câmeras?
Era tudo um grande jogo. Eu ficava dirigindo aquelas oito câmeras, como um grande joystick, já fazendo o corte ao mesmo tempo. Era como um jogo, mas sem stress, algo pequeno. Um dos operadores das câmeras e também editor do filme é o Júlio Andrade, o ator, que foi protagonista do Cão Sem Dono. Ele é um cara multimídia! Eram esses os talentos que queria no filme. E nada era certo, as coisas iam sendo descobertas aos poucos. O filme era uma experiência, de um casal disposto a tudo, ao jogo de sedução, ao descobrimento. Nada era pré-determinado. Tanto eu quanto eles íamos descobrindo tudo juntos.
A tua afeição ao universo das artes nos teus personagens é proposital ou surgiu ao acaso?
Este é o meu quarto filme em que os protagonistas são artistas. Em Crime Delicado tínhamos um crítico de arte, um pintor e uma modelo. Em Cão Sem Dono tem o estudante de literatura, que quer mas não sabe como se expressar. O Amor segundo B. Schianberg mostra esse ator e essa videoartista juntos, e no Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios o cara é um fotógrafo! Eu acho que os artistas transitam no mundo com uma cabeça mais livre, mais aberta para o não-convencional, para o embate com a vida, com a transformação. Estão mais sujeitos às mudanças. Ele precisa disso, é um ser mutante. Não é uma pessoa que se cala em verdades absolutas. E os meus filmes não falam só do meio artístico, mas são sobre artistas que estão circulando pelo mundo.
Quais são as expectativas de público para o Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios?
Pois então, com esse filme as coisas estão sendo bem diferentes. O B. Schianberg era um filme pequeno, um projeto independente, sem distribuidora nem nada. Já o Eu receberia… conta com a Sony, será um lançamento nacional, com mais de 50 cópias, e temos a Camila Pitanga como protagonista, que é um importante chamariz. Essas são aos nossas armas. E mesmo assim, trata-se de um lançamento médio. Não é grande, mas também não seremos tão pequenos. Não ficaremos restritos aos festivais, aos cinemas alternativos. Queremos nos comunicar com um público maior.
Em O Amor segundo B. Schianberg, há várias frases, ditas pelos personagens, que são destacadas e aparecem grafadas na tela. Como foi essa seleção e qual a razão destes dizeres?
O Schianberg é um psicólogo experimental que sempre falou das suas próprias experiências sentimentais. Ele desafia a filha no sentido de que a partir daquele momento irá falar em terceira pessoa, pois seria ela que conduziria a experiência. Ele diz: “tu vai lá, tu seduz a pessoa, e eu fico observando”. Esse é o ponto de partida que estava no livro do Marçal. Existe uma cumplicidade entre a menina e a câmera, pois só ela sabe de fato o que está acontecendo. E o olhar da câmera, o que o espectador vê, é o Schianberg. E estas frases foram escolhidas para sublinhar ideias que interessavam. Eram observações do Schianberg, coisas que um psicólogo estaria anotando durante uma sessão. E por outro lado, por questões técnicas, estes escritos na tela contribuem no entendimento dos diálogos. Não havia microfones nos atores, até para facilitar o desprendimento deles. Então nem sempre a captação de som foi perfeita, e esse reforço gráfico auxilia neste sentido.
O filme é, portanto, o resultado da experiência do Schianberg?
Essa era a ideia, mas cada um faz a sua própria leitura. Na série de televisão havia uma narração em off do Schianberg, então isso era evidente. No filme tirei isso, o que permite uma autonomia. Ele não é uma repetição da série, é algo novo, inédito.
E qual a relação entre estes dois filmes, O Amor segundo B. Schianberg e o Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios?
O Marçal Aquino ficou muito feliz com essa minha decisão. As duas histórias estavam no mesmo livro, mas ele decidiu abdicar de uma para desenvolver melhor a segunda. Eu aproveitei tudo, o que ficou e o que havia sido descartado. Assim, está tudo lá na tela. Os dois filmes dialogam com a mesma obra. O Gustavo Machado é o protagonista dos dois filmes, mesmo se tratando de personagens diferentes. Mas está tudo ali. E o cinema é isso para mim, uma ação entre amigos. O Marçal, o Gustavo, o Julinho… a gente fica amigo depois, e é sempre melhor trabalhar entre amigos. É isso também que quero com o espectador, criar essa relação. Tem outra coisa, que pra mim o cinema é um pretexto para passear. Eu quero filmar no pantanal (Os Matadores), no sul (Cão Sem Dono), no norte (Eu receberia…). Assim consigo decifrar novos códigos, buscar novas inspirações. Em Santarém, onde filmamos o Eu receberia… foi uma experiência transformadora! Afinal, o cinema não é feito para dar respostas, e sim para fazer perguntas!
(O cineasta Beto Brant foi entrevistado em Porto Alegre, no dia 24 de março de 2012, no Café Moeda, a convite do Cine Santander Cultural)
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Parabéns pelo filme, Beto. Ainda não vi, mas já gostei. Sucesso!