Camila de Moraes nasceu em abril de 1987, poucos dias antes de Júlio César de Melo Pinto ser preso e, no trajeto entre o local em que supostamente teria participado de um crime e a delegacia, foi morto pelos policiais que o conduziam. O episódio, que teve ampla repercussão na mídia gaúcha, acabou conhecido como O Caso do Homem Errado, título também do documentário que a cineasta agora lança sobre o incidente. Com apenas um curta como realizadora e alguns outros projetos como roteirista e/ou produtora, ela aceitou o desafio e está fazendo história, como a primeira mulher negra brasileira a lançar comercialmente nos cinemas nacionais um longa-metragem em mais de trinta anos. E foi sobre esse premiado projeto que a gente conversou com ela. Confira!
Olá, Camila. O Caso do Homem Errado, como ficou conhecida a prisão e morte de Júlio César de Melo Pinto, aconteceu na mesma época em que você nasceu. Como tomou conhecimento deste fato?
Eu tinha dias, apenas, de vida. Acontece que o Julio César foi irmão de criação do meu pai e era padrinho do meu irmão mais velho. Ou seja, essa era também a história da minha família. Ouvia a respeito do que havia acontecido em casa, desde muito pequena. Nunca foi segredo ou um tabu para nós. E a gente cresce ouvindo histórias similares, sobre pessoas negras sendo assassinadas sob as mais diversas circunstâncias, nas mais variadas ocasiões. Por conta disso, me dei conta de que era possível fazer do audiovisual mais uma plataforma para esse debate. Era isso que queríamos. E por que procurar longa quando tínhamos o assunto certo tão próximo?
Como nasceu o filme O Caso do Homem Errado?
A nossa proposta inicial era fazer um curta. Tanto que o primeiro projeto que desenhamos foi pensado assim, para todas as etapas. Acontece que tentamos nos inscrever em editais, e não rolou. Iniciamos uma campanha de financiamento coletivo, e até tivemos uma quantidade bacana de apoios, mas não o suficiente para atingirmos a meta necessária que havíamos estabelecido. A gente não sabia como continuar, até que fizemos uma parceria com uma produtora de Porto Alegre, a Praça de Filmes. Com eles ao nosso lado, decidimos começar a fazer as entrevistas.
Pois então, O Caso do Homem Errado nasceu como um curta-metragem. Em que momento vocês perceberam que havia a possibilidade de um longa?
Durante o processo de edição, já na pós-produção, em maio de 2017. Quando estávamos a caminho de finalizar o curta, mudamos de ideia e assumimos esse desafio. Enquanto estávamos montando o que havíamos gravado, o filme se transformou em longa. Até aquele momento, no entanto, ainda era a ideia de um curta que tínhamos em mente. A gente já tinha as pessoas contando a história que queríamos registrar. Havíamos escolhido um caso específico, com muitas pessoas contando o que havia acontecido, cada uma com o seu ponto de vista. Quando paramos para assistir a todo esse material, percebemos que era como um quebra-cabeça. A história ia se unindo, todos os elos aos poucos se fechavam, exatamente como havia acontecido tantos anos antes. Não tinha como contar tudo aquilo em apenas 20 minutos, era fato. Não dava, não suportava o tempo.
Foi preciso mudar muita coisa para transformar o curta em longa?
A decisão foi em consenso, não foi algo unilateral da minha parte. Então, todo mundo assumiu o desafio junto. Agora, foi difícil também deixar em 77 minutos. Era muito material. Chegamos a essa metragem por uma questão de montagem, para seguir um padrão, no formato de longa-metragem que estávamos buscando. Se não houvesse por onde nos guiar, acredito que estaríamos montando o material até hoje. Esse é o filme que queríamos, mas é também muito difícil abrir mão, chegar a dizer: “chega, está pronto”. Sempre há uma vontade de mudar mais um coisa, cortar isso ou acrescentar aquilo.
Depois do longa finalizado, como tem sido o processo de apresentá-lo ao público?
Estamos desde maio do ano passado com ele na rua, e desde então já passamos por diversas situações que nem imaginávamos. Foram diversas as nossas tentativas para tentar exibir o que havíamos feito, contatos com um sem número de festivais. Além disso, descobrimos somente depois que há muitas taxas que precisam ser pagas para regulamentar um filme. É um processo longo, complicado, e para quem está começando, como nós, foi bastante árduo. A pós-produção, com certeza, está sendo mais difícil do que tudo que passamos antes. Foi uma jornada muito agressiva, burocrática. Eu não sabia como funcionava, estou aprendendo fazendo. Estamos tateando, quebrando a cara, mas sem desistir.
O Caso do Homem Errado apresenta uma vasta galeria de entrevistados. Como foi feita essa seleção?
As primeiras gravações foram em junho de 2016, em Porto Alegre, e depois em Brasília, em novembro do mesmo ano, pois uma das fontes estava morando lá. Foram duas etapas. A gente fez essa pesquisa meio que por conta, mesmo. Quando a imprensa começou a noticiar, lá em 1987, esse episódio como O Caso do Homem Errado, meio que se criou um guia a respeito. Era só procurar a respeito desse nome. O envolvimento da imprensa foi bastante intenso, todo dia era noticiado algo novo a respeito. O jornal Zero Hora, por exemplo, ficou meses divulgando notícias a respeito, cada nova descoberta, todas as decisões que saíam a respeito eles publicavam. Então, ao olhar para o material daquela época, ficamos a par de quais eram as pessoas envolvidas, os nomes dos policiais, os representantes do movimento negro, todo mundo. Assim, definimos que seriam essas as pessoas que tínhamos que ir atrás.
Vocês conseguiram falar com todo mundo? Ou teve quem se negasse a conversar a respeito?
A única que dificuldade que enfrentamos é que fomos procurar por esses policiais que eram citados como envolvidos no episódio, e nenhum deles quis dar entrevista. Ninguém. Nem mesmo um representante da polícia, da Brigada Militar, absolutamente ninguém. Todas as portas se fecharam para nós neste sentido. A maneira, portanto, que encontramos para contornar essa situação foi conversar com pessoas que falassem sobre segurança pública. Foi um ponto novo que tivemos, o contraponto que conseguimos oferecer. Os depoentes daquela época que importavam nós já tínhamos, por causa dessa pesquisa na imprensa da época. O que agregamos foi isso, oferecer essa visão sobre como operava a questão policial no final dos anos 1980 no Rio Grande do Sul através de profissionais gabaritados, com experiência no assunto.
Vocês tentaram contato com o ex-governador Pedro Simon, por exemplo? Em alguns momentos tempos a impressão de só ouvir o lado da vítima.
Tentamos contatos com todos eles. Ninguém nos recebeu, nem nos deixaram falar. Os indivíduos, a instituição, ninguém quis tocar no assunto. Foi por isso que fomos conversar com a Aline Gerber, socióloga, e com o advogado do Sindicato da Polícia Civil, Romeu Karnikowski. Os dois puderam fazer uma análise da segurança pública na época. Eles falaram a respeito de como era a Brigada Militar naquela época, o que ele comenta, principalmente, é que era uma questão de ordem, e não para o bem de uma cidade. O importante era colocar ordem na sociedade. E, com isso, ele se achavam no direito de fazer seu pré-julgamento e executar quem bem quisessem.
Após terem passado por alguns festivais de sessões de pré-estreia, como você avalia a recepção do público?
Passamos em Gramado, no ano passado, mas fora de competição. E recebemos o prêmio de melhor longa no 9o Festival Internacional de Cine Latino, Uruguayo e Brasileiro, em Punta Del Este, Uruguai. Também tivemos exibições em Porto Alegre, RS, e em Salvador, BA. Na capital gaúcha a sessão foi na Cinemateca Capitólio, que tem mais de 700 lugares, e muita gente acabou ficando do lado de fora, pois não conseguiram entrar. Na Bahia, foi na Sala Walter da Silveira, que comporta até 200 pessoas, e teve gente que ficou em pé. Ou seja, em ambas tivemos lotações esgotadas. Só que inscrevemos o filme em vários festivais no Brasil, mas não fomos selecionados para nenhum deles. O que podemos concluir a partir disso?
Você acha que é uma questão de falta de público?
Existe, sim, um público para esse filme. Mas é da comunidade negra que estamos falando. Infelizmente, pois tratamos de uma questão racial. O resto da sociedade, que é quem mais precisa assistir e discutir, não tem visto. Não estamos conseguindo chegar até eles. Tá faltando gente. Daí nos perguntamos: “quem são essas pessoas que fazem as curadorias?”. Desde maio de 2017 estamos tentando uma distribuidora para lançar o filme nos cinemas, e não conseguimos. Uma delas chegou até a falar que O Caso do Homem Errado não era o perfil deles. Por quê? Hoje, no Brasil, o mercado cinematográfico é uma área dominada por homens brancos de classe média alta. E esse nicho diz que não é o perfil deles porque nosso filme trata de uma questão do extermínio de uma parcela da população que não é importante para eles. Temos público, as salas ficam cheias, mas não somos selecionados. O que acontece aí? Acho que é essa a grande questão a ser debatida.
Camila, você é a segunda realizadora negra a lançar um filme nos cinemas em toda a história do cinema brasileiro, após Amor Maldito (1984), de Adélia Sampaio. Como é lidar com essa responsabilidade?
É um peso a mais, com certeza. É mais um fato que mostra que vivemos num país racista, e que existe uma estrutura que não nos deixa passar dessa barreira. Não querem acabar com o racismo. É extremamente difícil lidar com isso. São taxas exorbitantes que precisam ser pagas, há uma série de documentação meramente burocrática, a negociação com as salas de cinema tem que ser feita uma a uma. É muita demora, é cansativo, todo esse processo é muito desgastante. Se você não tem muito amor pelo que está fazendo, se não acredita no projeto que tem em mãos, acaba desistindo. E é justamente por isso que nós não desistimos e estamos indo até o fim.
O Caso do Homem Errado fala de uma injustiça ocorrida há 30 anos. Como você avalia a situação dos negros no Brasil após todo esse tempo? Mudou ou segue igual?
Tá pior. O Júlio Cesar não foi a primeira pessoa a ser morta por causa da cor. E, infelizmente, não é a última. Ele morreu em 14 de maio de 1987, e em 14 de março desse ano a vereadora Mariele Franco foi executada, no Rio de Janeiro. Ou seja, mais de três décadas se passaram, e uma mulher negra que lutava pelos direitos da comunidade negra, e que falava da forma como a polícia trata essa parcela da sociedade, é morta no meio da rua. Não importa a nossa luta, se eles não concordam, vão lá e matam. Foi um recado que foi dado. O que temos que fazer? Transformar esse luto, essa perda, em luta. É doloroso, dói bastante, mas não podemos deixar que as pessoas que morreram por uma causa sejam esquecidas, que tenha sido em vão. Temos que continuar esse legado. Está maior a questão do extermínio negro no Brasil de hoje. Temos que continuar lutando. Soluções práticas para mudar esse quadro precisam ser tomadas. Não basta só falar. E o audiovisual vem para ser mais um aliado.
(Entrevista feita por telefone em Porto Alegre em março de 2018)
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