Flavio Frederico nasceu em 1969, no Rio de Janeiro, e formou-se em Arquitetura e Cinema na Universidade de São Paulo. Começou na direção de longas-metragens em 2001, com Urbania, premiado no Festival de Gramado e na Jornada da Bahia. Também dirigiu o elogiado e premiado Boca (2010), ficção estrelada por Daniel de Oliveira, que recebeu prêmios no Festival do Rio e no Cine-PE. Como documentarista, seu trabalho mais lembrado é Caparaó (2006), ganhador do Festival É Tudo Verdade, filme centrado na primeira guerrilha de luta armada contra a Ditadura Militar. Agora, Frederico retorna aos anos de chumbo com Em Busca de Iara, longa-metragem que destaca uma figura importante nos movimentos de militância contra o golpe de 64: Iara Iavelberg.

De família judia abastada, Iara teve uma trajetória de vida intensa, morrendo aos 27 anos de idade, em 1971. Militante política, a jovem se envolveu em diversos movimentos contra a ditadura. Conheceu e se apaixonou por um dos líderes da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), Carlos Lamarca, de quem foi companheira até a morte. Iara faleceu durante uma operação policial e, segundo a versão oficial, teria se suicidado. Em 2003, depois de muito lutar, a família Iavelberg conseguiu o direito de exumar o corpo para rechaçar esta versão. Três anos depois, Mariana Pamplona, sobrinha de Iara, e o diretor Flavio Frederico se reuniram para contar esta história. E o resultado está nas salas de cinema do Brasil, no aniversário de 50 anos do início do Golpe Militar.

O Papo de Cinema conversou com Flavio Frederico para saber mais sobre a gênese do projeto, as dificuldades e a importância de contar esta história para uma nova geração. E o cineasta conta tudo isso neste bate-papo imperdível.

 

Em Busca de Iara é um documentário bastante pessoal, com a Mariana Pamplona, sobrinha da retratada, à procura da verdade sobre a tia. Como aconteceu o seu contato com essa história?
Meu contato veio através da Mariana. Em 2006, o processo de exumação do corpo da Iara havia sido encerrado, com o sepultamento dos restos mortais dela ao lado da família. Então tivemos a ideia de ir ao enterro levando duas câmeras amadoras para captar aquele momento único, inclusive fechado para a imprensa. Não tínhamos projeto do filme ainda. Captamos e, ao longo dos próximos dois anos, colhemos alguns depoimentos, ainda sem compromisso de fazer um filme. Fizemos uma primeira pesquisa e resolvemos desenvolver um documentário que seria mais voltado à investigação do que ocorreu com a morte de Iara e os meses finais da vida dela, quando vem a Salvador com Lamarca. O tempo foi passando e vimos que precisávamos fazer um filme maior. Ir a fundo em quem foi a Iara, principalmente para ter essa comunicação com o público mais jovem. Assim surgiu o projeto Em Busca de Iara. Assumimos a Mariana como personagem e fio condutor. A pessoa que iria investigar o que aconteceu, entrevistando as pessoas.

 

Chama a atenção o tempo de produção do filme. Ele começou a ser realizado em 2006 e só ficou pronto em 2013. Quão importante é para o documentário ter este tempo de maturação e de pesquisa?
Muito importante. No caso do documentário, quanto mais tempo você tem, melhor ele fica. Óbvio que tem que existir um limite nesse processo e tudo depende do tipo de documentário que está sendo feito, qual é o assunto tratado. Alguns documentários se resolvem rapidamente, em algo que está acontecendo naquele momento. No caso do documentário histórico, esse tempo é fundamental. E quando se lida com assuntos relacionados à época da Ditadura, mais importante ainda. No nosso caso, a grande liberação de documentos reservados ocorreu só no último ano de produção, quando o filme estava na fase de finalização. Paramos tudo e revimos o que tínhamos feito. Recebemos 800 documentos que citavam a Iara vindos do Arquivo Nacional de Brasília. Este tempo foi fundamental para o filme. E tem uma questão no documentário que, por mais que você tenha um roteiro, geralmente ele é feito mesmo na montagem. Você precisa ver seu filme e observar o que vai acontecendo. No nosso caso, tivemos o agravante de que na metade do processo não tínhamos recursos, deixando mais lenta a captação.

Vocês seguraram o documentário esperando algumas entrevistas que acabaram não acontecendo. Isso prova o quanto vocês queriam mostrar a história mais completa possível, não?
Com certeza. Esse é o tipo de documentário que eu chamo de quebra-cabeça, quando falta uma pecinha você fica frustrado. Através dos documentos, descobrimos que a pessoa que teria visto a Iara viva pela última vez – e que na época era um menino – existia, tinha um nome. Queríamos falar com ele. Foi ele quem chamou os policiais que voltaram ao prédio e encontraram a Iara. A Mariana tem um trabalho de investigadora, de detetive no filme. Aquilo tudo era verdade. Eu ia correndo atrás dela com a câmera, não era uma coisa armada, acontecia mesmo. Ela falou com ele por telefone, eu também. Ele tinha dito que daria o depoimento e no fim das contas acabou não falando. Ficou receoso, a família fez certa pressão. Mesmo assim, por telefone, conseguimos fechar a história e compor o que faltava. O documentário histórico tem esta característica: você termina o filme e sempre aparecem coisas novas. A sensação é de que ele nunca acaba.

 

Uma das cenas mais fortes do documentário é quando a Mariana vai ao apartamento em Salvador mostrar o local do esconderijo de Iara, no prédio onde a tia foi vista pela última vez com vida. Como foi capturar aquelas imagens?
Foi uma aventura. Quando chegamos ao prédio tivemos muitas dificuldades, e isso está no filme, ainda que tenha sido mais difícil do que parece. Isso porque aquele prédio ficou marcado por aquele fato. Sofreu inúmeras intervenções, o síndico não queria deixar que fizéssemos a gravação. A nossa sorte foi que o único morador que topou receber a gente foi justamente o que vivia no 201. Então podemos entrar exatamente no apartamento onde ela vivia. Foi muito forte realmente. Não só para a Mariana, para toda a equipe do filme. Documentário você trabalha com uma equipe pequena e as pessoas vão se envolvendo. Por mais que ficássemos um ano sem nos encontrar, quando acontecia, todo mundo queria saber das novas descobertas. Foi muito forte aquele momento. Por outro lado, como documentarista, foi muito gratificante conseguir entrar lá e tentar refazer os últimos momentos da vida dela in loco.

O filme foi exibido, em 2013, no Festival do Rio e no É Tudo Verdade, onde recebeu Menção Honrosa. Como está sendo a recepção do público para o documentário?
É sempre uma exibição muito emocionante. Apesar de o filme ser histórico, ele tem esse viés pessoal, com a busca da Mariana. Parece que ele toca mais as pessoas. Elas ficam muito sensibilizadas, procuram a Mariana depois das exibições e tem sempre sido muito emocionante. No Brasil e fora. O filme será exibido em competição no Festival Internacional do Uruguai no mês de abril. Tem sido um momento único cada sessão do filme.

 

Em Busca de Iara chega num momento histórico importante, com o aniversário dos cinquenta anos do início do golpe militar. Isso, claro, dá mais visibilidade ao filme e, por mostrar os horrores daquela época, o documentário ganha uma importância ainda maior?
Com certeza. Na verdade, a gente planejou esta estreia já pensando nos cinquenta anos do golpe. E está dando certo. A procura tem sido grande, muitas pessoas querendo discutir o filme. No dia da estreia, 27 de março, tivemos uma sessão em Salvador incrível. Como a história termina por lá, a plateia está muito informada do que aconteceu. Acho que esse filme colabora em rever este momento e ficará como documento. Inclusive para a Comissão da Verdade. Chegamos a dar depoimento para eles no ano passado e, assim que o filme sair de cartaz, doaremos uma cópia para a Comissão. Estamos felizes em poder colaborar com esse momento. Hoje, o documentário tem grande força em nossa sociedade, que está muito ligada ao audiovisual. Ele fica como algo que pode ser consultado em universidades, em acervos. É um papel muito importante do documentário histórico – principalmente neste país, que não costuma valorizar tanto sua memória.

(Entrevista feita por telefone direto de Salvador em 28 de março de 2014)

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Jornalista, produz e apresenta o programa de cinema Moviola, transmitido pela Rádio Unisinos FM 103.3. É também editor do blog Paradoxo.
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