No site oficial da produtora Degrau Filmes, Philippe Barcinski se apresenta como “diretor, roteirista, produtor e professor”. O cineasta é, no entanto, muito mais. Talvez a forma mais acertada de defini-lo fosse como “investigador”. Afinal trata-se de um artista inquieto, que está sempre atrás das melhores maneiras de se contar uma história. Ele mesmo afirma que ‘apenas narrar uma trama não basta, é preciso descobrir a melhor e mais instigante maneira de assim fazer’. Sua carreira começou com curtas-metragens que lhe renderam mais de cinquenta prêmios nacionais e internacionais, com passagens pelos festivais de Cannes, Berlim, Rotterdam, Gramado, Brasília e Recife. Trabalhou em televisão, dá aulas de cinema em diversas entidades pelo Brasil e estreou na tela grande com o sensível Não Por Acaso (2007), estrelado por Rodrigo Santoro e produzido por Fernando Meirelles. Agora o diretor está de volta em cartaz com o drama Entre Vales, uma intensa jornada emocional que conta com Ângelo Antônio como protagonista. Foi durante o lançamento deste mais recente projeto com o realizador conversou com exclusividade com o Papo de Cinema. Confira!
Como surgiu a história de Entre Vales?
O Entre Vales está comigo há um bom tempo, antes mesmo de eu próprio saber que seria um filme. Começou cerca de vinte anos atrás, quando fui chamado para fazer uma pesquisa sobre um documentário – que, curiosamente, acabou não acontecendo – sobre o lixo. No meio dos trabalhos, fui parar no Jardim Gramacho, o mesmo do Lixo Extraordinário (2010). É um local muito impressionante, que hoje até já está fechado. Ali comecei a pensar que valia à pena fazer um filme que se passasse, ainda que em parte, naquele cenário. Conversando com as pessoas que vivem ali, que trabalham naquele lugar, o que em comum a grande maioria tem pra contar são histórias de perda. Ninguém decide ir parar num lixão, é o resultado de um acúmulo de tragédias, más decisões.
Mas só um lado de Entre Vales se passa no lixão…
Sim, mas foi como nasceu a história. O resto veio depois, quando me mudei para São Paulo e comecei a perceber a quantidade de carroceiros que circulam pela cidade. Fiquei impressionado com aquilo, parece um mundo à parte, algo paralelo. Foi quando decidi conhecer as cooperativas de catadores, queria saber mais daquelas pessoas. E é algo impactante, pois você percebe uma outra sensação de espaço, do real. Ali, a maioria das histórias que você ouve são de reconstrução, de pessoas que chegam sem nada e depois de um tempo por lá começam a se organizar. Ou seja, no lixão ou com os catadores, são dois estágios de vida diferentes, são vales que me interessavam investigar.
Como foi possível construir as ligações estre estes dois extremos?
Na verdade, são pontos diferentes de um mesmo caminho. Em ambos os lados estão pessoas com pouca grana, sem ter muito onde se apoiar. O que as difere é o modo como enxergam suas situações. Se no lixão estão desprendidas de tudo, nas cooperativas elas começam a dar seus primeiros passos para se integrarem novamente à sociedade. No lixão temos histórias de perda, nas cooperativas encontramos um celeiro de trajetórias de reconstrução. Lixo se transforma, se recicla, vira outra coisa. Então, foi no lixo que encontrei a minha história, ela veio naturalmente. Queria propor uma jornada física, não só uma narrativa objetiva. Foi isso que quis passar. Você acha que está no meio do caos total, mas aos poucos vai percebendo que existe uma organização. Fui construindo as cenas a partir do que aqueles espaços me representavam.
Em certo momento do filme, o protagonista interpretado por Ângelo Antônio realmente caminha entre dois vales. O que essa imagem lhe representa?
O primeiro título, quando começamos a trabalhar no projeto, era Entre Vales e Montanhas. E assim ficou, por muito tempo, com essas duas imagens fortes, de algo menor, discreto, diante dessa elevação maior, mais imponente. Significa altos e baixos, entende? Visualmente, tem aquele vale onde o personagem está, que é onde o lixo vai entrar, e tem as montanhas de lixo que ele, num momento futuro, estará escalando. O filme tem uma proposta de topografia. O problema é que acabou ficando muito explícito, muito explicado, e não gosto de entregar tudo tão facilmente. A história se passa entre vales, do lixo e da vida. E o uso da palavra ‘entre’ sugere também transição, movimento, é algo que acho legal, quando o título é um pouco enigmático. E é também delicado. Estimula o enigma na direção do que o filme é dramaturgicamente.
Este é um filme que depende muito da força do elenco, principalmente do protagonista. Como foi a escolha do Ângelo Antônio para esse papel?
A primeira coisa que pensei é que deveria ser um ator que conseguisse manejar bem as cenas com o filme, aqueles momentos ternos entre os dois, tinha que ter um carinho que ficasse evidente na tela. E o Ângelo faz com muita facilidade uma pessoa terna e doce, e simplesmente porque ele é assim! Ele me pareceu, desde o primeiro momento, o cara ideal para estas sequências, com muita empatia afetiva. Era preciso que o espectador estivesse a par da vida pregressa dele, porque só assim seria possível encarar essa jornada de dor de recomeço. São passagens silenciosas, em que é possível criar o tempo e a ação, com muita calma. Um bom exemplo é quando pai e filho estão montando a maquete, há uma fruição no momento, olho no olho, isso permite que não se seja o tempo todo tão objetivo. E, por outro lado, tinha que ser um ator que conseguisse produzir uma explosão de energia, que tivesse um vulcão em si, e qualquer um que tenha visto 2 Filhos de Francisco (2005) sabe do que o Ângelo é capaz!
E com o resto do elenco?
Queria atores não muito conhecidos, não facilmente identificáveis. Queria propor essa estrutura hiper-realista, combinando atores com não-atores. Estou muito feliz com esse conjunto. O personagem principal é muito difícil, é um cara silencioso, que não fala muito, cheio de momentos de pausas, muita respiração. Por isso que, para ele, precisava ser alguém experiente, com repertório. E isso a gente encontra no Ângelo Antônio. Ele tem essa coisa de ser conhecido, mas que se mimetiza. Atores que estão sempre na televisão levam muito tempo para você deixar de enxergar o intérprete e visualizar o personagem, e com o Ângelo não é assim. Com ele, pude aproveitar o talento, mas sem o problema da notoriedade.
Entre Vales é uma coprodução entre Brasil, Uruguai e Alemanha. Como se deu essa parceria?
A gente ficou um tempo enorme captando verba para completar o orçamento. Levantar dinheiro de fundos públicos é muito complicado, as empresas não querem investir em filmes de peso, buscam material menos pungente, de retorno mais imediato. Esse, certamente, não é o nosso caso. Elas não querem associar suas marcas à questões mais intensas. Por isso que, para conseguir fechar o orçamento, a solução foi se internacionalizar. Fomos atrás de todos os mecanismos internacionais possíveis. Um que conseguimos foi o Hubert Bals, na Holanda, e depois o Ibermedia, que nos levou a essa coprodução com o Uruguai. Este é um país com uma equipe técnica muito boa, se faz muita publicidade lá, por que é barato, a luz é fantástica, o centro histórico de Montevidéu é belíssimo, e tem muita natureza por perto. Há um intercâmbio incrível por lá, então o nível profissional é altíssimo. No nosso filme, a equipe de maquiagem e de captação do som direto eram todos uruguaios. E, para terminar, ganhamos um fundo alemão da cidade de Colônia, e com isso a oportunidade de finalizarmos o som lá. Essa etapa foi toda feita na Alemanha. Há muitos silêncios e diálogos, ruídos complexos, como os caminhões, tratores, aquele universo sonoro dos lixões, são massas sonoras que se sobrepõem mas não podem se abafar, era preciso evitar que uma anulasse a outra. Nada foi simples, mas deu resultado.
Como você chegou ao nome do Daniel Hendler e como foi trabalhar com ele no Brasil?
Pois então, além desse suporte técnico, através dessa parceria com o Uruguai chegamos também ao Daniel Hendler, que é dono de uma produtora, tá fazendo o segundo filme dele como cineasta e ficou muito entusiasmado com a ideia. Olha, o que posso dizer é que fiquei com gosto de quero mais. Ele é muito bom! É um cara engraçado, camarada, fácil de se lidar, preciso em suas marcações, acerta tudo de primeira e sempre tem uma sugestão válida para acrescentar ao processo. Me lembrou um pouco, na técnica, o Rodrigo Santoro. Os dois possuem um domínio técnico absoluto do cinema. O Ângelo, por exemplo, é um cara que manja tudo, mas é mais intuitivo, se joga e faz coisas diferentes, surpreende e testa coisas novas na hora. O Daniel, assim como o Rodrigo, tem muito controle, são estilos diferentes.
E como foi combinar estas duas técnicas num mesmo filme, com o Ângelo e o Daniel?
Quando estava filmando o Ensaio sobre a Cegueira (2008), o Fernando Meirelles publicou um texto no blog dele comparando o Mark Ruffalo e a Julianne Moore – os protagonistas do filme – com o ato de ferver duas massas com diferentes tempos de cozimento na mesma panela. Nunca ficam prontos ao mesmo tempo, é sempre necessário buscar o ponto de equilíbrio entre eles. O Ruffalo é intuitivo, a Julianne é muito técnica. Foi a mesma coisa que senti ao lidar com o Ângelo Antônio e o Daniel Hendler. Com ele, em especial, deu vontade de fazer mais, foram poucas cenas, é apenas uma participação especial. Este é somente o segundo filme dele no Brasil, então quem sabe no futuro? Mas no mercado latino ele é uma megacelebridade, já foi premiado no Festival de Berlim, e agora está fazendo uma novela em Buenos Aires – onde ele mora – que o tornou absurdamente popular. Oportunidades não faltarão, mas tem que ser um investimento muito planejado trazê-lo para cá novamente.
Entre Vales foi exibido pela primeira vez no Festival do Rio 2012. Somente agora, dois anos depois, é que está entrando em cartaz. Quais foram os motivos dessa demora?
Foi um conjunto de situações. Primeiro, tivemos algumas complicações burocráticas que nos impediram de finalizar o filme para o lançamento comercial dentro do prazo que buscávamos. Depois, quando tudo ficou pronto, eu estava envolvido com uma série de televisão, e por isso ficaria bastante indisponível, não poderia participar do processo de divulgação – como estou falando contigo agora, por exemplo. Quando me liberei, foi a vez do Ângelo se complicar, pois ele estava fazendo uma novela. Por isso decidimos esperar um pouco mais. Às vezes os parceiros comerciais exigem uma data específica de lançamento, mas não era o nosso caso, estávamos tranquilos. Então decidimos viajar com o filme, fomos a mais de quinze festivais no Brasil e no exterior, estamos indo para a China, agora. O filme tá vivo, tá circulando, e acho que foi um ganho.
O que você espera que o público encontre em Entre Vales?
Nós fechamos a distribuição nacional com a Imovision, e isso me deixou muito feliz. Sabe, essa é a casa do Lars von Trier, do Michael Haneke, aqui no Brasil. É uma distribuidora acostumada a trabalhar bem seus filmes, tem um olhar mais artístico, preocupada com cada um dos seus lançamentos. É um lugar bom para se estar com filmes desse perfil, que atua bem no circuito de arte. Então creio que iremos nos encontrar com um público disponível para se conectar com essa trama difícil, porém de muitos ganhos. Nas pré-estreias e festivais que temos acompanhado vemos os espectadores muito emocionados com o filme, gente chorando ao final. Isso tem me deixado muito satisfeito, pois acho que entenderam o que queria passar. É um filme pequeno, estará circulando por poucas salas, mas que tem muitas chances de crescer. Basta que nos deem uma chance.
(Entrevista feita por telefone direto de São Paulo no dia 07 de maio de 2014)
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